"Fora de controlo." Retrato da 2.ª pior epidemia de ébola de sempre
Três mil casos, duas mil mortes. Só estes números já dão a dimensão da epidemia de ébola que afeta a República Democrática do Congo (RDC). O primeiro caso deste surto, o décimo no país desde a década de 1970 e o segundo maior de sempre no continente africano, surgiu há precisamente um ano e de lá para cá a taxa de mortalidade subiu para níveis assustadores. Números que João Antunes, representante em Portugal dos Médicos sem Fronteiras, destaca ao DN: duas em cada três pessoas diagnosticadas com a doença acabam por morrer; cerca de um terço acaba por morrer nas suas comunidades, ou seja, sem cuidados de saúde; e 28% das vítimas são menores de idade. António Guterres está neste fim de semana na RDC para declarar o apoio das Nações Unidas à luta contra a doença.
Uma luta que está ainda longe de terminar, reconhece João Antunes. Na República Democrática do Congo, neste momento, surgem 72 novos casos de ébola por semana, o que representa um ligeiro abrandamento em relação a meses anteriores mas que ainda assim está longe de tranquilizar quem está no terreno. "A situação é complexa e não está controlada", reconhece o representante em Portugal dos Médicos sem Fronteiras (MSF), organização que tem cerca de 500 elementos no terreno, entre os quais pelo menos dois portugueses, uma médica e um funcionário da logística. Apesar de 5% das vítimas mortais do surto serem técnicos de saúde, não há registo de mortes entre os funcionários dos MSF.
A zona onde o surto surgiu, uma área de selva tropical junto às fronteiras com o Uganda e com o Ruanda, com problemas de segurança, é outros dos obstáculos com que as autoridades têm de lidar.
Foquemo-nos no exemplo da vacinação, que neste momento é feita em anel, isto é, quando há a confirmação de um caso as autoridades procuram as pessoas que estiveram em contacto com a vítima para que possam ser vacinadas. "Para se perceber a dimensão deste processo, basta dizer que Goma [cidade no leste da República Democrática do Congo, junto ao lago Kivu] tem 1,6 milhões de pessoas. Além disso, muitas vezes, para encontrar essas pessoas é preciso percorrer grandes distâncias em zonas de selva tropical, com problemas de segurança."
É um processo "desafiante", define, em tom eufemístico, João Antunes, que defende uma outra estratégia de imunização da população contra a doença, a vacinação em massa. "Seria mais eficaz nestas zonas de risco, embora levante questões de disponibilidade de vacinas e de refrigeração, porque têm de estar sempre em temperaturas corretas." Mas, para que a mudança aconteça, os atores no terreno têm de chegar a acordo.
O governo local, através do Ministério da Saúde, as organizações internacionais e as próprias comunidades têm de coordenar a resposta, explica João Antunes, que detalha uma espécie de roteiro no combate à epidemia. Além da coordenação da resposta e da vacinação já a decorrer, o representante dos Médicos sem Fronteiras diz que é preciso apostar na prevenção e identificação atempada de novos casos, para que procurem serviços de saúde; no fortalecimento das estruturas de saúde local; e, "ponto fundamental", colocar as comunidades no centro da resposta a esta emergência. "As pessoas têm de sentir que fazem parte da solução, têm de sentir confiança, ser ouvidas, caso contrário tendem a esconder-se e a ocultar os sintomas. Hoje, um terço dos doentes morrem nas suas comunidades sem ter acesso a cuidados."
O dia-a-dia das equipas dos Médicos sem Fronteiras na República Democrática do Congo é dedicado a boa parte destas tarefas. "Levantar às 06.30, porque os centros de saúde abrem às 08.00 e já temos pessoas à espera, onde trabalhamos juntamente com o pessoal local, no tal fortalecimento das estruturas de saúde, até porque não podemos esquecer-nos dos outros problemas que afetam o país." Dados atualizados nesta semana pela Organização Mundial da Saúde mostram que a RDC registou, desde janeiro, 287 mortes e mais de 15 mil casos de cólera, 3117 mortes e mais 161 mil casos de sarampo, num país onde a malária mata quase 50 mil pessoas por ano. "Mas estamos também nos centros de tratamento de ébola, com aqueles fatos que parecem de astronautas, e onde as normas de segurança têm de ser cumpridas à risca." António Guterres vai visitar um destes centros no domingo.
O secretário-geral ONU defendeu neste sábado, em Goma, que a organização está "do lado das autoridades e do povo" no combate ao sarampo, malária, cólera e ébola. "Existem grandes preocupações com a saúde. Há sarampo, malária, cólera e agora um drama terrível que é o ébola. Estamos totalmente do lado das autoridades congolesas e do povo congolês para enfrentar todos esses desafios", disse António Guterres, que falava aos jornalistas pouco depois de iniciar a sua visita de três dias à República Democrática do Congo.
O responsável da Organização das Nações Unidas (ONU) sublinhou ainda que está a visitar o país em solidariedade e para expressar a sua admiração pelo povo congolês e, em especial, pelos habitantes do Kivu Norte. A agenda de hoje do secretário-geral da ONU inclui a cidade de Goma, uma das mais afetadas pelo ébola, com várias reuniões de carácter humanitário e conversações sobre as atividades da missão de paz das Nações Unidas na RDC (MONUSCO).
No domingo, António Guterres segue para a província de Kivu Norte, onde há um ano se identificou o primeiro caso daquele que é considerado o décimo surto de ébola no país. Em Kivu Norte, vai visitar um centro de tratamento e vai manter encontros com sobreviventes da doença e prestadores de cuidados de saúde.
António Guterres encontra-se com o presidente do país, Félix Tshisekedi, na segunda-feira na capital, Kinshasa, onde será também recebido por membros do Parlamento e representantes de organizações da sociedade civil.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a RDC registou mais de 3000 casos de ébola no último ano e mais de metade das pessoas afetadas pelo ébola foram mulheres, que compõem 58% das vítimas, e outros 28% são menores de 18 anos.
A maior epidemia de sempre de ébola registou-se na África Ocidental entre 2014 e 2016, e afetou cerca de 29 mil pessoas, das quais 11 310 morreram, principalmente na Guiné, Libéria e Serra Leoa.