A mesa da sala de Maria Celeste, de 61 anos, parece a secretária de um consultório médico. É lá que guarda a balança, o termómetro, o medidor de pressão arterial, o oxímetro de pulso e o smartphone, que usa todas as segundas, quartas e sextas-feiras para se pesar, medir a quantidade de oxigénio no sangue, a temperatura e a tensão arterial. "E aos domingos faço um eletrocardiograma. É simples: quando começo a fazer as medições ligo o telemóvel que me deram, os dados são transmitidos e no final só tenho de o desligar", conta ao DN. Se os valores mostrarem algum sinal de agravamento, recebe de imediato uma chamada..Desde que recebeu o diagnóstico de insuficiência cardíaca, Celeste deixou "de viver a 200% para passar a viver a 50%". Uma mudança violenta para alguém que "pensava que era a supermulher". Teve alguns sustos, passou por vários internamentos. Chegou a dormir com a porta de casa destrancada, com medo de se sentir mal durante a noite. No final do ano passado, o médico que a acompanha no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, propôs-lhe que integrasse um projeto de telemonitorização, que tem vindo a ajudá-la a aprender a viver com a doença. "Ainda não foi preciso, mas, se não me sentir bem ou se os valores justificarem, encaminham-me para o hospital. Agora sinto-me um pouco mais tranquila, e não vou tantas vezes ao médico. É como se tivesse uma enfermeira a monitorizar-me diariamente. E há um serviço de apoio 24 horas por dia", afirma, destacando que, como vive numa aldeia perto de Mafra, este sistema evita muitas deslocações a Lisboa..Telemonitorização em oito hospitais públicos.A telemonitorização - que neste ano está a ser desenvolvida em oito hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) - é uma das subáreas da telessaúde, um tema em discussão no simpósio Telehealth for Chronic Diseases: Integrated Patient-centric Solutions, evento integrado no 27.º Congresso da EAHM - European Association of Hospital Managers, que decorreu na sexta-feira no Centro de Congressos do Estoril.."A implementação da telessaúde está a avançar a um ritmo acelerado e em praticamente todo o território nacional", adianta ao DN Micaela Monteiro, diretora do Centro Nacional de TeleSaúde (CNTS), que está sob a responsabilidade dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS)..O recurso às tecnologias da informação e da comunicação está a mudar a forma como se presta cuidados de saúde no país. "Através da telessaúde é possível ultrapassar barreiras geográficas, facilitar o acesso a serviços, ter um acompanhamento mais continuado e articulado entre os diferentes níveis de cuidados. Já não é necessário partilhar o mesmo espaço físico para receber cuidados de saúde. Não é apenas mais cómodo para o utente e as famílias, mas também ajuda a reduzir custos em deslocações ou através de uma organização mais eficiente dos recursos disponíveis", sublinha Micaela Monteiro..Teresa Magalhães, investigadora nas áreas de sistemas de informação na saúde e responsável pela implementação do primeiro programa integrado de telemonitorização da insuficiência cardíaca no Hospital de Santa Maria, destaca as vantagens desta ferramenta nas doenças crónicas: "Quando atuamos de forma precoce na agudização da doença, evitamos gastos desnecessários com internamentos e idas às urgências. Mas isto não pode ser visto só numa perspetiva económica. Damos mais qualidade de vida aos doentes e reduzimos a mortalidade." Desta forma, prossegue, o paciente torna-se mais autónomo, aprendendo a lidar melhor com a sua doença, já que passa a reconhecer os sinais.."A prescrição médica eletrónica, em que o utente recebe a sua receita no telemóvel, é provavelmente o ato de telessaúde mais conhecido entre nós, em Portugal", indica Micaela Monteiro. Mas existem muitas outras. As primeiras experiências na área da telessaúde surgiram em 1998, na zona centro, na área da cardiologia pediátrica, coordenadas por Eduardo Castela, e no Alentejo, com uma rede de telemedicina entre cuidados de saúde primários e hospitalares..Teleconsultas em tempo real.Atualmente, exemplifica a diretora do CNTS, existem "teleconsultas em tempo real, em que profissionais e utentes se ligam através de videochamadas; e teleconsultas em tempo diferido, em que, por exemplo, uma imagem de uma lesão cutânea "viaja" por via digital para o especialista no hospital para uma priorização dos casos mais urgentes ou mesmo para resolução das situações menos graves através de recomendações que ajudam o médico de família a tomar as melhores decisões". Já "no centro de contacto do SNS, SNS 24, os enfermeiros todos os meses atendem em média mais de cem mil chamadas de utentes com dúvidas relativamente a questões de saúde - o que faz deste provavelmente o maior serviço de telessaúde em Portugal"..Na opinião de Teresa Magalhães, presidente da comissão executiva do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, "houve um impulso grande com os contratos-programsa dos hospitais e com a definição desta área como estratégia"..Em 2017, registaram-se 28 448 teleconsultas em 18 unidades de saúde em Portugal, de especialidades como dermatologia, cardiologia, cardiologia pediátrica, nefrologia, medicina física e de reabilitação. As consultas de dermatologia, por exemplo, envolvem 24 unidades hospitalares, das quais 14 são centros hospitalares. Nestas consultas, geralmente o doente e o médico de família estão no centro de saúde e o dermatologista está no hospital, que pode ser a dezenas de quilómetros de distância. "Neste momento, o que é preciso é desenvolver a teleconsulta sem intermediário, médico-doente", sugere Teresa Magalhães..Embora considere que a telessaúde pode ser um forte aliado do SNS, Teresa Magalhães reconhece que "a falta de literacia na população mais envelhecida é uma barreira" à sua implementação, pelo que é preciso "o envolvimento dos profissionais no ensino aos doentes da sua condição de doença e no que podem beneficiar com este suporte tecnológico". Embora esta ferramenta beneficie todas as faixas etárias, nas suas diversas vertentes, "a população que necessita de maior acompanhamento é a mais envelhecida" e que, muitas vezes, "está distante dos grandes centros hospitalares". Um outro entrave é a resistência que ainda existe por parte das equipas. "Muitos profissionais, da área clínica e de gestão, ainda não perceberam os benefícios que têm com estes programas.".E não haverá o risco de se perder o contacto humano? "Existem diversas posições, mas acho que não há, se as coisas forem feitas de forma a retirar os benefícios para os doentes. A tecnologia está a mudar a forma como fazemos medicina", diz Teresa Magalhães, destacando que esta "é um forte aliado" dos profissionais de saúde no Hospital da Cruz Vermelha.."Portugal está a tornar-se líder".Ao DN, Frederic Lievens, vice-diretor executivo da Sociedade Internacional para Telemedicina e eHealth (IsfTeH) e um dos convidados do simpósio, diz que, embora ainda não haja uma implementação global desta ferramenta na Europa, "os governos (e os sistemas de saúde nacionais e regionais), as seguradoras e os grandes empregadores estão a analisar seriamente como fazer um melhor uso da telessaúde e como financiá-la"..Na opinião do representante, "Portugal está a tornar-se líder na integração e na generalização dos serviços e aplicações de telessaúde no serviço nacional de saúde." Frederic confirma que "a telessaúde pode reduzir os custos gerais da saúde", mas que este não deve ser um fator decisivo para a sua implementação. Por outro lado, destaca "os resultados clínicos, o conforto e a satisfação do paciente". Há países, adianta, em que os aspetos ambientais também estão a ser estudados, uma vez que há uma redução do número de viagens dos doentes..Falta regulamentação.Em junho, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, defendeu uma maior regulamentação da telemedicina (uma das subáreas da telessaúde) nos hospitais portugueses, na sequência da morte de uma doente examinada por telerradiologia no Centro Hospitalar do Oeste. "A medicina à distância é uma questão que já existe, mas é nova. A regulamentação que existe nesse momento para a medicina à distância ainda é incompleta", alertou, naquela altura, em declarações à agência Lusa.