Talibãs pagos para matar norte-americanos? Rússia volta a assombrar Trump
A suspeita de que a Rússia interferiu nas presidenciais de 2016 em apoio de Donald Trump seria sempre tema obrigatório na campanha para a sua reeleição em novembro de 2020, mas as últimas revelações sobre as alegadas ações de Moscovo representam ainda mais problemas para o presidente dos EUA.
Desta vez, os russos estão a ser acusados de oferecer recompensas aos talibãs para matarem militares norte-americanos no Afeganistão, sendo que a Casa Branca (e supostamente o próprio Trump) sabia e não reagiu.
Russos e talibãs negam a informação e Trump alega que não foi informado de nada, uma vez que havia dúvidas dentro dos serviços de informação norte-americanos sobre a veracidade da história.
Mais uma dor de cabeça para Trump a meses das presidenciais, numa altura em que está em queda nas sondagens pela forma como tem reagido à pandemia de coronavírus e por causa dos protestos raciais, desencadeados após a morte do afro-americano George Floyd às mãos de um polícia branco.
A informação da existência das recompensas, que seria paga pelos russos a grupos ligados aos talibãs, foi revelada pelo The New York Times na última sexta-feira, com base em informações dos serviços de segurança, recolhidas por sua vez através de interrogatórios a vários militantes no Afeganistão. Os norte-americanos não eram os únicos alvos: o dinheiro seria pago pela morte de qualquer militar das forças de coligação no terreno.
A recompensa teria sido oferecida pela unidade 29155 dos serviços de informação militares russos (GRU), que também se suspeita tenha estado por detrás do envenenamento do ex-espião Sergei Skripal, em março de 2018, no Reino Unido.
Não é claro o valor associado nem se alguma vez foi na realidade pago. Só em 2019, 20 norte-americanos morreram no Afeganistão - um ataque no qual três fuzileiros foram mortos em abril desse ano estará a ser investigado, segundo a agência de notícias Associated Press - e outros quatro morreram no início deste ano. Desde que os talibãs assinaram um acordo com os EUA para a retirada das tropas norte-americanas do país não foram registadas novas baixas.
De acordo com a agência, as suspeitas em relação à existência da recompensa aumentaram depois de a famosa Team 6 dos Seal (a força de elite da Marinha dos EUA responsável pela morte do líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden) ter tomado de assalto um posto talibã e descoberto 500 mil dólares em dinheiro, já no início deste ano.
Já esta terça-feira, o The New York Times revelou que os serviços de informação norte-americanos intercetaram dados bancários que apoiam a teoria de que a Rússia teria oferecido a recompensa.
Segundo o artigo original do The New York Times, Trump teria sido informado da existência de tal recompensa em finais de março, mas não teria tomado qualquer medida contra a Rússia.
O presidente norte-americano nega contudo alguma vez ter sabido. "Os serviços de informação indicaram-me que não acharam esta informação credível e que, por isso, não me informaram nem ao vice-presidente Mike Pence. Provavelmente outra mentira russa fabricada, provavelmente pelo The New York Times, que quer que os republicanos fiquem mal vistos", escreveu no Twitter, no domingo.
Já na segunda-feira, a porta-voz da Casa Branca, Kayleigh McEnany, indicou também que não havia consenso entre os serviços de informação sobre as alegações (pelo contrário, havia posições contrárias), pelo que Trump não foi informado sobre a alegada existência das recompensas.
Essa mesma informação foi passada num encontro com vários congressistas republicanos, chamados à Casa Branca para avaliarem a situação, tendo os democratas sido chamados já na terça-feira. Estes querem saber afinal o que sabia Trump e quando soube.
Ao final da noite de segunda, Trump partilhou um comunicado oficial do diretor dos serviços de informação, John Ratcliffe, reiterando precisamente que nem Trump nem Pence foram informados. E um outro sobre o impacto deste tipo de revelação. "As fugas de informação seletivas de qualquer material classificado interrompe o trabalho interinstitucional vital de recolha, avaliação e mitigação das ameaças e deixa as nossas forças em risco. É também, dizendo de forma simples, um crime", lê-se no texto.
Contudo, já esta terça-feira (30 de junho), noutro artigo, o The New York Times alega que o presidente recebeu a informação por escrito sobre o tema ainda em fevereiro, no relatório diário que é produzido e lhe é entregue. No passado, já foi revelado que o presidente muitas vezes não lê esse documento e que prefere ser informado diretamente, sendo que mesmo nessas circunstâncias há relatos de que é difícil passar a palavra.
Pressionada para dizer se o presidente tinha recebido ou não a informação por escrito, a porta-voz da Casa Branca não deu uma resposta clara os jornalistas.
Entretanto, a Associated Press foi ainda mais longe e escreveu que a Casa Branca tinha informações sobre a recompensa desde o início de 2019 e que o então conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, teria informado o próprio presidente - a informação é de antigos colegas, com Bolton (que entrou entretanto em rutura com Trump) a recusar dizer se o informou ou não.
O caso voltou a levantar dúvidas sobre a aparente relutância de Trump em enfrentar os russos, especialmente diante de um comportamento que, a ser provado, representa um desafio para a segurança dos EUA. E a relembrar as nunca esquecidas denúncias de alegada interferência de Moscovo nas presidenciais de 2016 a favor de Trump (com ou sem o conluio de membros da sua campanha).
Algo que o seu adversário democrata à Casa Branca, Joe Biden, aproveitou para lembrar: "Não só falhou em sancionar ou impor algum tipo de consequência à Rússia pela sua violação flagrante do direito internacional, Donald Trump continua a sua campanha embaraçosa de deferência e rebaixou-se perante Vladimir Putin", indicou o ex-vice-presidente.
A Rússia já veio negar as informações. "Estas alegações são mentira", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, citado pela agência Interfax, lembrando que o próprio presidente norte-americano já indicou que não havia credibilidade nas denúncias. E aproveitou também para reiterar as acusações de fake news em relação ao The New York Times.
Segundo as informações dos media norte-americanos, o objetivo da Rússia ao pagar aos talibãs para matar militares norte-americanos seria desincentivar as negociações para a retirada das tropas do país, pondo fim ao mais longo conflito em que os EUA estiveram envolvidos.
A saída dos EUA preocupa os russos, que não querem que um eventual aumento do fundamentalismo islâmico chegue às suas fronteiras.
Em 1979, em plena Guerra Fria, a União Soviética invadiu o Afeganistão e lutou contra os mujahedins. Um grupo deles viria a dar lugar aos talibãs, que foram combatidos pela Aliança do Norte, que já nos anos 1990 recebeu o apoio da Rússia.
Mas, atualmente, os russos mantêm boas relações com os talibãs (há responsáveis norte-americanos que acusam Moscovo de armar os talibãs), não querendo que o Estado Islâmico encontre no país uma base para voltar a ganhar poder e exportar as suas ideologias para a Ásia Central e para lá das fronteiras russas.
Os talibãs também negaram as alegações e reiteraram o seu compromisso no acordo de paz assinado em fevereiro com os EUA durante uma videochamada com o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo. O acordo prevê a saída das tropas norte-americanas, em troca de garantias de segurança do grupo, que deverá também começar a negociar diretamente com o governo afegão.
Mas as notícias de que Trump saberia da recompensa alegadamente oferecida pelos russos aos talibãs e continuou a negociar com eles não deixa o presidente numa posição confortável. Os talibãs podiam estar a negociar com Washington ao mesmo tempo que recebiam o dinheiro de Moscovo para matar soldados norte-americanos.