Vitória das Big Tech? UE trava a fundo na regulação e deixa ativistas em alerta
Ilustração DN

Vitória das Big Tech? UE trava a fundo na regulação e deixa ativistas em alerta

Enquanto a Comissão argumenta a favor das PME europeias, ativistas denunciam que os verdadeiros beneficiários do adiamento e da flexibilização de dados são Google, Meta e Microsoft.
Publicado a
Atualizado a

A Comissão Europeia apresentou esta semana uma proposta legislativa surpreendente que promete redesenhar o calendário da regulação digital no bloco. Num movimento amplamente interpretado como uma admissão de que a Europa está a perder a corrida global da Inteligência Artificial (IA), Bruxelas avançou com o pacote "Digital Omnibus", propondo adiar a aplicação plena do AI Act e flexibilizar normas rigorosas de proteção de dados.

A decisão surge num momento crítico. Dois meses após o famoso relatório de Mario Draghi ter alertado que a "hiper-regulação" estava a sufocar a inovação europeia, a Comissão parece ter decidido mudar de rumo. A medida mais sonante é o adiamento dos prazos de conformidade para os sistemas de IA de "alto risco": originalmente previsto para agosto de 2026, o cumprimento obrigatório destas regras poderá ser empurrado para o final de 2027.

A indústria tecnológica e governos como o francês e o alemão aplaudiram a iniciativa, vendo-a como a única forma de garantir que startups europeias (como a Mistral AI) consigam escalar sem serem esmagadas pela burocracia. No entanto, esta narrativa enfrenta ceticismo feroz.

Competitividade ou "cavalo de Troia" dos americanos?

Várias organizações de transparência, como o Corporate Europe Observatory, têm alertado para o facto de os argumentos usados agora pela Comissão -- o "custo da conformidade" e o travão à inovação -- serem exatamente os mesmos que Google, Microsoft e Meta utilizaram em reuniões à porta fechada em Bruxelas nos últimos anos.

A acusação é clara: sob o pretexto de ajudar pequenas empresas europeias a sobreviver, a UE está a remover barreiras para quem realmente domina o mercado. No fundo, adiar as regras até final de 2027 não salva a pequena startup sediada em Lisboa, antes permite que Microsoft ou Google consolidem as suas posições dominantes no mercado sem qualquer fiscalização externa durante mais dois anos críticos.

Acesso a dados: "legalizar a ilegalidade"?

O ponto de maior discórdia, contudo, é a reinterpretação do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). A proposta sugere que dados pessoais usados para treinar IA possam ser processados de forma mais livre, desde que a empresa não tenha a "intenção" de identificar os indivíduos.

Max Schrems, o ativista fundador da NOYB, organização não-governamental europeia, sediada em Viena e focada na aplicação prática e legal dos direitos digitais e da privacidade, classificou a proposta como um retrocesso histórico e uma capitulação perante o modelo de negócio das Big Tech. "Estão a tentar transformar a proteção de dados numa questão subjetiva. Se isto passar, empresas como a Google ou a Meta poderão aspirar os nossos dados mais sensíveis para treinar modelos, alegando simplesmente que não nos queriam identificar", alertou. Dito de outra forma, trata-se de legitimar retroativamente práticas de extração de dados que hoje seriam legalmente duvidosas, critica.

Quando a escala global atropela as boas intenções legislativas

Em última análise, a controvérsia sobre o adiamento das regras esconde uma questão mais profunda e desconfortável para Bruxelas: poderá a regulação, por si só, criar campeões tecnológicos? A história recente sugere que proteger as PME europeias através de leis -- sejam elas restritivas ou facilitadoras -- pode ser insuficiente num mercado que obedece à ditadura da escala global.

O sucesso das gigantes tecnológicas asiáticas oferece um contraponto cru a esta estratégia. Mesmo operando sob regimes politicamente centralizados e hiper-regulados como a China, a ascensão meteórica de empresas como a ByteDance (TikTok) ou os gigantes de IA chineses não nasceu de "sandboxes" cuidadosamente legisladas. Pelo contrário, estes impérios foram construídos em ambientes iniciais de "selva digital", tirando partido de uma desregulação quase total no uso de dados e na implementação comercial antes de qualquer intervenção estatal.

Foi essa liberdade agressiva que lhes permitiu atingir a massa crítica necessária para competir globalmente. Ao tentar incubar inovação através de decretos, a Europa corre o risco de ignorar a lição mais dura do setor: na corrida pela hegemonia da IA, onde a vantagem competitiva se mede em triliões de parâmetros e biliões de utilizadores, qualquer regulação -- mesmo a bem-intencionada proteção das pequenas empresas -- pode acabar por funcionar não como um escudo, mas como um teto de vidro.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt