A Conta Geral do Estado de 2024 (CGE 2024), o maior e principal documento que retrata a situação financeira das Administrações Públicas portuguesas, foi chumbada pelo Tribunal de Contas (TdC) por não cumprir a lei maior que rege as Finanças Públicas, anunciou, esta quarta-feira, a instituição presidida desde outubro do ano passado por Filipa Urbano Calvão.O motivo invocado foi a violação de normas da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), o principal diploma que regula as contas públicas em Portugal (e que articula diretamente com o quadro de regras europeu do Pacto de Estabilidade), e que tem uma força legal quase constitucional.Segundo o governo, a LEO "estabelece os princípios e as regras orçamentais aplicáveis ao sector das administrações públicas", bem como "o regime do processo orçamental, as regras de execução, de contabilidade e reporte orçamental e financeiro, bem como as regras de fiscalização, de controlo e auditoria orçamental e financeira, respeitantes ao perímetro do subsetor da administração central e do subsetor da segurança social".O Tribunal entregou este Parecer sobre a CGE esta quarta-feira, mas devia tê-lo feito, também segundo a lei, até 30 de setembro.No novo documento, o TdC indica que "o juízo emitido é de não conformidade com a Lei de Enquadramento Orçamental por a Conta não integrar as demonstrações orçamentais e financeiras consolidadas da Administração Central e da Segurança Social, facto que impossibilitou a sua certificação pelo Tribunal".O juízo inclui ainda "reservas e ênfases por omissões no reporte, designadamente no âmbito da dívida pública, da carteira de ativos financeiros do Estado, do património imobiliário e das responsabilidades contingentes"."E também por erros materialmente relevantes que subvalorizaram a receita e a despesa, bem como por contabilização irregular de montantes recebidos para financiamento de despesa enquadrável no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)", lamenta o coletivo de auditores.Certificados de aforro e tesouro por pagarO parecer identifica ainda "casos de incorreta classificação e reporte de fluxos financeiros com as administrações regionais, locais e com o setor empresarial do Estado e dá conta de que se encontram omissos na Conta valores relativos a certificados de aforro e do tesouro vencidos e não pagos".Assim, o Tribunal decidiu enviar "69 recomendações ao Governo e à Assembleia da República, entre as quais uma nova referente ao processo de conversão dos títulos físicos de certificados de aforro, pelo seu impacto nas famílias".O coletivo de juízes insiste ainda que "no âmbito dos produtos de aforro, identificaram-se montantes avultados relativos a contas aforro com dados desatualizados, verbas que podem correr o risco de prescrição".Nos impostos, também há problemas. "O Tribunal evidencia ainda o não apuramento da despesa fiscal para 1/3 dos benefícios fiscais e o facto de não se controlar, para todos os benefícios fiscais em IRS, a existência de dívidas fiscais dos contribuintes (o que conduziria à sua suspensão)".E acrescenta que fez uma análise ao património imobiliário da Segurança Social na qual "identifica que 20% dos imóveis encontram-se devolutos existindo constrangimentos na respetiva gestão, por uma grande parte necessitar de obras de reabilitação".Nas PPP, o Tribunal alerta para "insuficiências existentes no reporte ao nível das parcerias público-privadas [PPP], quer quanto à identificação do universo, quer quanto à validação dos dados e alerta também para o acréscimo em 2024 das responsabilidades contingentes associadas a litígios em curso".Demoras significativas no PRR "No que concerne aos fluxos financeiros com a União Europeia, o Tribunal sublinha a persistência de significativas demoras na execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e do PT 2030, bem como na materialização dos seus efeitos".Segundo o TdC, "a apenas dois anos do término do seu período de execução, verifica-se que 72% do valor total programado do PRR permanece por chegar à economia real".E quanto ao PT 2030 (o envelope clássico dos fundos europeus programados a sete anos), "a taxa de execução no final de 2024 era de apenas 5,5%, apesar de decorridos já três anos do período de programação".Adicionalmente, o Tribunal salienta "a persistência de insuficiências na informação disponibilizada publicamente relativamente à monitorização do PRR e ao reflexo da sua execução na Conta de 2024".No que se refere à implementação da Reforma das Finanças Públicas, "o Parecer dá conta de que, do total de financiamento previsto no PRR para esta reforma, apenas 5,2% se encontram executados [até ao final de 2024], e identifica a falta de desenvolvimentos essenciais, designadamente quanto ao nível dos sistemas de informação e à qualificação de recursos humanos, bem como ao calendário de implementação".Segundo chumbo em dois anosA declaração de "não conformidade" com a Lei de Enquadramento Orçamental é algo que tem sido raro nos últimos dez anos, pelo menos, de acordo com um breve levantamento feito pelo DN.Desde 2014, ano em que o país saiu do Programa de Ajustamento da troika, o Tribunal de Contas tem dado pareceres positivos, ainda que sempre com reservas.Mas, em 2023, a CGE (responsabilidade do anterior governo PS, de António Costa e do ministro das Finanças, Fernando Medina), recebeu pela primeira vez este juízo negativo do Tribunal e por motivos parecidos com os deste ano 2024 (CGE da responsabilidade do governo PSD-CDS, de Luís Montenegro e Joaquim Miranda Sarmento).No Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2023, incluindo a da Segurança Social, o TdC também avançou "com um juízo de não conformidade com a Lei de Enquadramento Orçamental, por não integrar demonstrações orçamentais e financeiras consolidadas da administração central (AC) e da segurança social (SS), o que também impossibilitou a certificação da Conta", como agora."Os atrasos na implementação da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) continuam a não permitir complementar a contabilidade orçamental com informação financeira e de gestão", declarou o TdC há um ano.Na altura, o Ministério das Finanças (Medina) defendeu-se, apontando "para uma implementação gradual e faseada da Lei, o que torna necessária a adequação dos prazos legalmente definidos e já ultrapassados".