Rendas Congeladas: Fisco está a cobrar IMI a imóveis isentos
“A Autoridade Tributária e Aduaneira agradece o seu contacto. Todos os pedidos de isenção do artigo 46-A do EBF estão a aguardar instruções dos serviços centrais. Com os melhores cumprimentos” (5 de maio, às 11H54); “A Autoridade Tributária e Aduaneira agradece o seu contacto. Aguardamos instruções superiores tem de aguardar” (7 de maio, 13H27); “A Autoridade Tributária e Aduaneira agradece o seu contacto. O reconhecimento do benefício é da responsabilidade do IHRU [Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana], entidade a quem se deve dirigir para obtenção de informação” (8 de maio, 16H52).
Estas são três respostas que o Fisco enviou nos últimos dias a três proprietários de imóveis com arrendamentos habitacionais anteriores a 1990, que, tendo há vários meses efetuado pedido de isenção de IMI previsto no Orçamento de Estado para 2024 (Lei nº 82/2023, de 29 de dezembro, que estabelece estarem os imóveis em causa isentos deste imposto a partir de 2024 e no período da duração dos contratos referidos), ainda não conseguiram obter deferimento dessa isenção por parte da Autoridade Tributária (AT), estando apreensivos pelo facto de se estar a entrar no período de liquidação desse imposto.
E com razão: há quem, nas mesmas circunstâncias — detendo imóveis com arrendamentos anteriores a 1990 — já tenha recebido a nota de liquidação, verificado que esta não reflete a isenção a que tem direito e, contactando a AT, sido por esta aconselhado a pagar e “aguardar que se resolva”.
Isso mesmo atestam vários membros de um grupo de Facebook de senhorios com arrendamentos anteriores a 1990: “Fui a uma repartição de finanças, disseram-me para reclamar no e-balcão, já o fiz, e entretanto pagar o IMI, até 31 de Maio, porque, se entretanto a situação se resolvesse, a AT devolveria”; “Liguei para a Autoridade Tributária e disseram que este ano não vem refletido na nota de liquidação do IMI mas que posteriormente será tido em conta e haverá retroativos”. “A informação que obtive das Finanças é de que este assunto tem que ser resolvido pelo IHRU e Câmara, só depois é que é comunicado às Finanças. Contudo, fui aconselhada a pagar e depois reclamar.”
"Fui aconselhada a pagar e depois reclamar."
Proprietária com arrendamento habitacional anterior a 1990
Estas respostas da Autoridade Tributária são tanto mais incompreensíveis quando, como mencionado, a isenção em causa está prevista no OE de 2024, o qual não oferece, no seu artigo 263º, qualquer dúvida: “Ficam isentos de IMI, pelo período de duração dos respetivos contratos, os rendimentos (…) obtidos no âmbito de contrato de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-lei nº 321-B/90, de 15 de outubro (…).” Acrescendo que, como o DN tem vindo a noticiar desde junho de 2024, a AT está há quase um ano a receber pedidos de isenção dos proprietários abrangidos, já que o comprovativo desse mesmo pedido é um dos documentos exigidos aos proprietários que queiram receber a compensação a quem tem rendas congeladas (outorgada pelo decreto-lei 132/2023, de 27 de dezembro).
“É o jogo do empurra e uma tristeza pegada”
Veja-se o caso de um proprietário que no início de maio, confrontado com a nota de cobrança de IMI relativamente ao imóvel pelo qual tinha requerido isenção, reproduziu, numa comunicação à AT, todas as respostas que esta lhe deu desde que, a 10 de julho de 2024, lhe enviou um pedido de isenção de IMI: “O pedido ainda se encontra pendente” (28 de novembro de 2024); no mesmo dia, após ter aberto nova questão no e-balcão: “Ainda não há previsão, nem qualquer instrução para efetuar procedimento para estas isenções. Mais se informa que estas isenções só produzem efeitos para o próximo ano, pelo que ainda está muito a tempo”; “Ainda não há instruções para o procedimento de isenção (…)” (10 de fevereiro de 2025); “A situação ainda se mantém igual, deve aguardar” (24 de março de 2025); “Ainda não há instruções para a atribuição desta isenção” (22 de abril de 2025); após reabertura de nova questão: “Deve aguardar.”
Confrontado pelo DN com esta situação, o ministério das Finanças não deu qualquer esclarecimento. A mesma ausência de resposta por parte da tutela da AT havia ocorrido em junho de 2024, quando o jornal pediu explicações sobre a recusa da AT em sequer esclarecer os proprietários dos mesmos imóveis quando estes perguntavam como podiam requerer o comprovativo de isenção de IMI de que necessitavam para dar entrada do pedido de compensação no IHRU.
Como então noticiado pelo DN, a AT ou não respondia ou alegava, como se vê no exemplo acima, que a isenção em causa estava consagrada no OE de 2024, e que o imposto relativo a esse ano só seria liquidado em 2025, pelo que considerava não ser necessário debruçar-se sobre o assunto naquela altura — apesar de a lei fazer depender o acesso a um direito (a compensação aos senhorios) da apresentação do comprovativo da isenção. Ou seja, esta ausência de resposta correspondia, como o DN titulou na altura, a um “boicote” do Fisco ao acesso à compensação.
De tal modo assim foi que o IHRU acabou por dizer aos proprietários que estavam a tentar obter os documentos necessários à submissão do requerimento de compensação que bastava enviarem uma fotografia do pedido de isenção feito à AT no e-balcão (a AT acabou por disponibilizar, a 4 de julho de 2024, um formulário online para efetuar esse pedido).
A ausência de "colaboração" da AT viria de resto a ser referida em novembro de 2024 no parlamento pelo ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, como uma das razões do enorme atraso no processo de deferimento e pagamento das compensações aos senhorios com rendas congeladas (atraso que suscitou, em abril último, uma recomendação da Provedora de Justiça ao Governo no sentido de uma “intervenção célere”): “O processo afunila na AT”.
Porém, como se constata, nem a crítica de um ministro nem o alerta da Provedora contribuíram para resolver o problema: malgrado o Fisco se ter mostrado ciente de que a isenção estava prevista no OE2024 e se refletiria na cobrança de IMI em 2025, aparentemente nada foi feito para a reconhecer. Aliás, de acordo com uma das respostas enviadas aos senhorios, remete até a resolução do problema para o IHRU, tutelado pelo ministro Pinto Luz.
Uma resposta que a proprietária a quem a AT a enviou reputa de “estapafúrdia”. Outra proprietária lamenta: “É o jogo do empurra porque nem os serviços estão preparados para responder às nossas questões por falta de transparência e informação sobre o processo, nem o sistema informático está preparado nem há vontade política para resolver a questão. É uma tristeza pegada.”
Outro membro do grupo de Facebook referido frisa: "Os contratos estão registados no portal das Finanças com data anterior a 1990, logo a isenção deveria ser automática". Na verdade, não é exatamente assim: a isenção, no que respeita a estes contratos, só se aplica nos casos em que a renda esteja limitada pelo rendimento do inquilino (que, de acordo com a legislação em vigor, é considerado como padecendo de "insuficiência económica" caso tenha um rendimento mensal inferior a cinco salários mínimos, ou seja, menos de 4350 euros brutos, o que naturalmente inclui a esmagadora maioria dos arrendatários).
“Estou a desenvolver perturbação de stress pós-traumático com isto”
A cobrança de IMI aos imóveis com rendas congeladas, contra o disposto na lei e após meses de pedidos de esclarecimento, é apenas mais um episódio no destrato dos proprietários em causa pelo Estado. Só no que respeita às últimas disposições legais -- as que pretendem "compensá-los" pelo facto de não terem, durante décadas, podido aumentar o valor das rendas --, o rol de desconsiderações é bastante impressionante.
Como o DN tem vindo a noticiar e a Provedora de Justiça reconheceu na sua recomendação ao Governo, o IHRU levou, apesar de obrigado legalmente a deferir ou indeferir os pedidos no prazo de 30 dias, mais de sete meses a iniciar o pagamento das compensações, havendo ainda muitos proprietários que não receberam nem dinheiro nem qualquer resposta do instituto.
E, sendo obrigados pela lei em vigor a efetuar anualmente novo pedido de compensação, não conseguiram até obter qualquer informação do IHRU sobre como se deverá processar essa renovação -- é-lhes dito que aguardem, porque o formulário em causa ainda não foi criado. Sendo que no site do mesmo IHRU este adverte para que a renovação deve ser efetuada dois meses antes do término do prazo anual do pagamento da compensação atribuída -- ou seja, para quem a pediu em julho de 2024, a partir deste mesmo mês de maio.
A última informação pública sobre o número de pedidos de compensação entrados e deferidos data de fevereiro de 2025, e é proveniente do Governo: teriam sido até então submetidos 4850 pedidos de compensação, tendo menos de metade -- 1739 -- sido deferidos, mas em relação a muitos desses não tinha sido ainda efetuado qualquer pagamento.
"Acho que estou a desenvolver perturbação de stress pós-traumático com o congelamento das rendas. São umas atrás das outras, estamos sempre a descobrir mais"
Diana Ralha, Associação Lisbonense de Proprietários
O DN tem regularmente solicitado ao IHRU informação sobre este processo, nomeadamente quanto ao número de pedidos ali entrados e de deferimentos, sem qualquer resultado. Porém recentemente o instituto começou a enviar para os senhorios requerentes da compensação um número de processo/pedido, que poderá indicar o volume de requerimentos nesse sentido. A 24 de abril último, um proprietário recebeu uma comunicação do IHRU a informá-lo de que o seu pedido de compensação fora "registado com sucesso" e iria ser "devidamente analisado" -- e que lhe estava atribuído o "número de candidatura" 10512.
Se este número corresponde a pedidos de compensação, ter-se-á verificado um salto significativo desde fevereiro. Mas até confirmação oficial, trata-se apenas de uma hipótese.
O que não é uma hipótese é o facto de o IHRU não ter pago, aos senhorios que já estão a receber a compensação, a prestação relativa ao mês de maio (e que deveria ter sido transferida até ao dia oito). Não é igualmente hipotética a ausência de resposta da AT aos pedidos de isenção de IMI (que poderá eventualmente estender-se à isenção no IRS dos valores referentes às rendas destes mesmos contratos, igualmente legislada). Há até casos, como prova uma publicação datada deste sábado no citado grupo de Facebook dos senhorios, em que a AT não só não aplicou a isenção como aumentou o valor do imposto.
"Hoje, tive finalmente acesso, no sítio da AT, à nota de cobrança de IMI - estou estupefacto, indignado e revoltado! Para além de não terem cumprido com o que estipula a lei: ponto 2 do Artigo 46.º-A em aditamento à Lei n.º 82/2023 de 29/12, não tendo assim sido posta em prática a isenção de IMI; acabaram com a taxa reduzida, que era indexada ao valor da renda recebida e não ao Valor Patrimonial Tributário (VPT); foi aplicada taxa normal, indexada portanto ao VPT. Conclusão, o IMI quase que quadruplicou, passou de €35,73 para €138,94. Respetiva reclamação feita já no sítio da AT e queixa na Provedoria de Justiça. (...) Este inferno nunca vai acabar!", lê-se na referida publicação, acompanhada de imagens da nota de cobrança.
Diana Ralha, da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), suspira. “Por muito absurdo que seja, creio que se ‘esqueceram’ destes casos. Ficou toda a gente à espera de que alguém resolvesse o assunto ou mandasse resolvê-lo, e não aconteceu”. No seu caso, explica ao DN, 11 meses após ter requerido o comprovativo do pedido de isenção à AT em relação a imóveis com arrendamentos anteriores a 1990, a informação que surge é apenas de que o pedido foi "submetido". Enquanto isso, o pedido de isenção de um imóvel comprado em dezembro de 2024 surge como “deferido”.
"Acho que estou a desenvolver perturbação de stress pós-traumático com o congelamento das rendas”, conclui esta representante dos senhorios. "São umas atrás das outras, estamos sempre a descobrir mais". Ainda assim, informa, a ALP aguarda que surjam as notas de liquidação para verificar se efetivamente se confirma que o Fisco não está a atribuir a isenção legislada -- e, se for assim, agir.
Quanto à recomendação da Provedora no sentido de que o Governo agisse "com celeridade", foi exarada quando este se encontrava já em gestão. Mas recorde-se que, se no seu programa eleitoral de 2024 a coligação governamental se comprometia a revogar o congelamento definitivo das rendas dos contratos habitacionais anteriores a 1990, quando entrou em funções, e após parecer dar indicação, no OE2025, de querer efetivamente revogar a medida, recuou.
No atual programa eleitoral, a coligação PSD/CDS-PP já não fala de revogação. Mas continua a referir o controlo de rendas como "uma solução errada" que "colide com o direito de propriedade" -- "Soluções erradas de controlo de rendas (...) do Governo anterior (...), aposta ideológica em medidas restritivas que limitam e colidem com o direito de propriedade" --, e socialmente injusta: "A medida é também socialmente injusta, tantas vezes protegendo arrendatários com rendimentos superiores aos proprietários, que veem congelada a remuneração das suas poupanças".
Estas asserções não se refletem porém no anúncio de uma medida em relação ao congelamento de rendas em vigor, nem sequer quanto à compensação criada pelo último executivo do PS: o programa é omisso quanto a ela.