O comissário europeu dos Assuntos Económicos, Paolo Gentiloni, cujo mandato termina dentro de dias.
O comissário europeu dos Assuntos Económicos, Paolo Gentiloni, cujo mandato termina dentro de dias.Fotografia: Kenzo TRIBOUILLARD / AFP

Ganhos de poder de compra dos salários em Portugal definham nos próximos dois anos

Novas previsões da Comissão Europeia mostram que Portugal tem o quarto maior retrocesso da Europa nos ganhos salariais até 2026. Pode haver exceções em setores como indústria e construção por via da escassez de qualificados. Nas contas públicas, excedente é 500 milhões de euros maior do que dizem as Finanças.
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Após fortes ganhos reais em 2023 e neste ano, a recuperação do poder de compra dos salários em Portugal (salário bruto médio por empregado) vai travar a fundo nos próximos dois anos, prevendo-se um ganho de apenas 1% em 2026 ao nível dos chamados salários reais (descontando a inflação prevista), indica a Comissão Europeia (CE), na novas previsões económicas de outono, ontem divulgadas em Bruxelas.

De acordo com um levantamento feito pelo DN, Portugal aparece com a quarta maior degradação no ritmo do poder de compra salarial, que registou um forte impulso nos últimos dois anos, na sequência da recuperação da crise inflacionista (e do forte embate sofrido em 2022, o ano em que começou a guerra da Rússia contra a Ucrânia).

Mas a recuperação de rendimentos em causa neste período de 2023 e 2024 (que fez o salário real por trabalhador subir bem acima dos 3% ao nível da economia portuguesa) é sobretudo explicada, como o reflexo de medidas para proteger o poder de compra dos trabalhadores e pensionistas tomadas pelo anterior governo PS e prolongadas, em parte, pelo atual executivo PSD-CDS, que acrescentou algumas novas, ainda que de menor escala.

A ideia que presidiu a estas políticas foi tentar devolver parte do brilharete das contas públicas (obtido por via do crescimento assinalável de contribuições e impostos, assente em sucessivos recordes na criação de emprego) aos contribuintes.

No entanto, de acordo com as novas projeções de Bruxelas, esse tempo acabou. A inflação, que chegou a tocar num máximo superior a 10% no final de 2022, desceu, devendo ficar numa média de 2,6% em 2024.

As previsões da CE mostram que o panorama de ajustamento em baixa no ganho de poder de compra salarial (entre 2023 e 2026) acontece numa minoria de países, essencialmente aqueles que em 2023 não acusaram uma quebra no indicador.

Foi o caso de Croácia, Letónia, Roménia e Portugal só para citar os quatro que agora, até 2026, vão experimentar um ajustamento mais agressivo nos ganhos de poder de compra. A Croácia lidera a travagem, com uma redução face à situação de 2023 na ordem de 4,9 pontos percentuais (p.p.) no ganho real nacional (que será de 1,7% em 2026).

Em segundo, surge a Letónia (menos 4,2 p.p.), devendo ainda assim registar um ganho real salarial de 1,8% daqui a dois anos.

Em terceiro surge a Roménia (menos 3,2 p.p.), mas conseguindo obter um ganho real aceitável de 4,4% em 2026. Em quarto temos Portugal, cujo ganho real baixa cerca de 2,3 pontos, colocando o salário por trabalhador apenas 1,2% acima da inflação esperada pela CE, em 2026.

Mesmo assim, a Comissão está preocupada com as pressões salariais em Portugal e faz questão de o sublinhar no novo estudo que elaborou para as 27 economias da União Europeia (UE).

"À luz do aumento esperado dos salários reais, projeta-se que a inflação excluindo produtos energéticos e produtos alimentares diminua a um ritmo ligeiramente mais lento", afirma Bruxelas.

Escassez de talento faz subir salários

Ontem, sexta-feira, a Comissão também entrou no debate nacional sobre se há ou não falta de pessoas qualificadas (os chamados talentos), sobre o efeito nas dinâmicas salariais e o que isso pode significar para a vitalidade do mercado de emprego e da economia.

Na opinião da CE, Portugal tem escassez em algumas áreas vitais da atividade.

Diz assim: "O crescimento do emprego continua a registar uma moderação ao longo do período de previsão [deve crescer 1,1% este ano, mas desliza para 0,8% em 2026], embora continue a permitir uma descida marginal da taxa de desemprego [de 6,4% da população ativa para 6,2% dentro de dois anos]".

No entanto, Bruxelas avisa que "embora as taxas de ofertas de emprego tenham permanecido baixas, alguns setores, incluindo a indústria transformadora e a construção, estão a sinalizar condições de contratação restritivas e escassez de competências". Resultado: "Tal deverá manter as pressões salariais elevadas", conclui a CE.

Sendo verdade que o aumento geral que ainda se prevê nos salários (sobretudo os nominais e em determinados setores) ajuda o consumo privado e a economia como um todo, a Comissão relembra o que está a acontecer no setor público em termos remuneratórios e de como isso pode complicar a "consolidação orçamental" (entrega de excedentes sucessivos para reduzir a dívida).

Em 2024, "as medidas de política orçamental, como os pagamentos de valores fixos nas pensões e os aumentos extraordinários da massa salarial da função pública, estão a pesar sobre a despesa pública", aponta a CE.

Em 2025, destaca "os aumentos discricionários dos salários da função pública", que junta a outras medidas como "a redução das taxas do imposto sobre o rendimento das empresas, o impacto da transição do quadro revisto do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, a atualização prevista do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares dos jovens".

Excedente 500 milhões de euros acima do previsto, em 2024

Todos os ministros das Finanças das últimas décadas, quase sem exceção, rejeitam sempre a ideia de que as contas públicas têm folgas.

Dizem que qualquer ganho adicional deve ser prioritariamente canalizado para pagar aos credores, para abater na dívida pública que, embora esteja a descer, continua a ser uma das maiores da Europa e do mundo desenvolvido.

Já agora, o rácio previsto pela CE é de 95,7% do Produto Interno Bruto (PIB) no final deste ano, devendo descer para perto de 90% em 2026. Ainda assim, está longe, bem acima, do máximo 60% exigido pelo Pacto de Estabilidade.

Pelas contas de Bruxelas, o excedente público de Portugal – uma raridade na Zona Euro, apenas mais dois países (Irlanda e Chipre) conseguem ter saldo positivo – deve ser bem maior do que prevê o governo e o Ministério das Finanças, de Joaquim Miranda Sarmento.

A CE refere que Portugal chega ao final deste ano com um excedente de 0,6% do PIB, mais do que os 0,4%, a estimativa que consta do Orçamento do Estado para 2025, revelado há um mês.

De acordo com dados das Finanças e da CE, significa que, em contabilidade nacional, o excedente deste ano pode facilmente chegar a 1,6 mil milhões de euros em vez de 1,1 mil milhões, como diz Sarmento. Se não é folga, é um desvio positivo de 500 milhões de euros face ao que se pensava em meados de outubro. E o ano ainda não acabou.

Segundo a Comissão, “as receitas públicas deverão continuar a expandir-se, beneficiando do desempenho das receitas fiscais e das contribuições sociais num contexto de atividade económica sustentada, de maior rendimento disponível das famílias e de um mercado de trabalho resiliente”.

Este impulso explica bem o excedente, apesar de algum esboço de hesitação manifestado pela CE sobre alguns acontecimentos novos na despesa.

Os valores da despesa pública em Portugal ainda não suscitam "particular preocupação" à Comissão, disse o comissário dos Assuntos Económicos, Paolo Gentiloni, reagindo assim às últimas análises e indicadores que apontam para uma aceleração dos gastos públicos, que este ano poderão aumentar a um ritmo bastante elevado face ao comum nos últimos anos, na ordem dos 10%.

Na apresentação aos jornalistas, Gentiloni, que está em fim de mandato, assim como a restante CE (a nova tomará posse dentro de escassas semanas), elogiou Portugal pela forte compressão nas contas públicas e pela redução assinalável do peso da dívida que, em todo o caso, continua a ser dos maiores da Europa.

Questionado esses sinais novos de crescimento forte na despesa, o italiano declarou que “é algo que registamos, mas não estamos, neste momento, particularmente preocupados com o nível de despesa”.

E prosseguiu com um registo francamente abonatório. “Na nossa estimativa, Portugal continuará a diminuir o rácio da dívida, atingindo 90% em 2026”, disse o comissário.

"Lembro-me, pessoalmente, quando celebrei com o então primeiro-ministro, que é agora o presidente [eleito] do Conselho Europeu, o facto de Portugal ter baixado a dívida para menos de 100%”. Estava a falar de António Costa.

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