A escassez de talento é uma realidade com a qual as empresas portuguesas - quer as startups, quer mesmo as mais estabelecidas - se têm vindo a confrontar. E o setor tecnológico tem sentido esse impacto com mais intensidade que os outros, com as homólogas do Norte da Europa a recrutar intensamente, quer logo nas universidades, quer nas companhias nacionais.Este cenário levou muitas empresas a “procurar restringir a mobilidade laboral, limitando o modo como os seus trabalhadores podem abandonar a empresa para trabalhar para concorrentes ou fundar as suas próprias empresas”, como nota um trabalho da Autoridade da Concorrência - divulgado no dia 25 de julho - intitulado “Concorrência e IA Generativa: Mercados Laborais”.Uma das formas de restringir a fuga de trabalhadores especializados são as “cláusulas de não-concorrência”, que, salienta a AdC, podem “impedir antigos trabalhadores de trabalhar para concorrentes ou de abrir empresas concorrentes, após o fim do contrato de trabalho e durante um determinado período”. As cláusulas de não-concorrência também podem impedir que ex-empregados solicitem ou aceitem clientes e parceiros de negócio do antigo empregador.Aliás, no âmbito deste trabalho, a AdC fez um inquérito junto de 68 empresas ativas no setor digital em Portugal e concluiu que mais de um em cada três (37%) inclui cláusulas de não-concorrência do tipo descrito acima em todos os seus contratos. Outras 19% incluem-nas “na maioria dos seus contratos” e 3% em alguns. Ou seja, apenas 41% das empresas contactadas pela AdC não as incluem de todo.Contactado pelo DN/Dinheiro Vivo, Tiago Dias, CEO da startup Unlockit, diz que, em 20 anos no setor, assistiu à forma como este tipo de cláusulas se tornou “prática corrente e alargada”. “Apesar de não ser uma prática ilegal, na Unlockit não o faço. Acho que é a forma fácil de tentar reter uma pessoa e prefiro cativá-los com um projeto interessante”, diz o empresário.Tiago Dias diz que, em projetos por onde passou, tentaram incluir esse tipo de cláusulas no seu contrato, mas que recusou sempre. Esse tipo de cláusula vem associado, normalmente, a um prémio salarial por troca com a restrição no eventual final do contrato.“Na realidade, ficaria impossibilitado de vir a prestar serviços onde quisesse. Creio que para não ser ilegal, a empresa de onde saísse teria de me pagar por um período” acertado entre as partes, realça ao DN.O empresário e gestor considera ainda que, em última análise, este tipo de cláusulas são mais uma faceta do ambiente de “algum bullying” que existe no setor tecnológico em Portugal.Sobre eventuais acordos de não contratação acertados entre empresas do setor tecnológico, que por exemplo impeçam a contratação em bloco de equipas de I&D ou outras, Tiago Dias não tem dúvidas de que existem, mas de modo oficioso e sem que alguém os queira admitir.O tema é sensível e o DN/Dinheiro Vivo contactou várias empresas nacionais do setor digital para obter as suas visões sobre o assunto e as respostas variaram entre a recusa expressa em falar sobre o tema, a ausência de resposta ou a indicação breve de que se trata de matérias contratuais confidenciais.A AdC salienta que “as cláusulas nos contratos de trabalho que restringem a mobilidade laboral não são inerentemente anticoncorrenciais”. Várias jurisdições - e Portugal é uma delas - regem estas cláusulas “através de enquadramentos legais específicos, como sejam os códigos do trabalho, civil ou comercial, ou a jurisprudência nacional”. .Trabalhadores podem ficar até três anos impedidos de exercer funções no mesmo setor .A mão de obra é altamente especializada e cada vez mais rara de encontrar. As empresas de IA estão sedentas de talento e a escassez de profissionais configura-se num aperto às regras na hora de contratar. A AdC conclui que estes empregadores procuraram “restringir a mobilidade laboral, limitando o modo como os seus trabalhadores podem abandonar a empresa para trabalhar para concorrentes ou fundar as suas próprias empresas” e aponta as cláusulas de não-concorrência como uma das vias mais utilizadas na atividade. Em termos concretos, os patrões podem acordar algumas exigências com o trabalhador. A prática, comum, por exemplo, em setores altamente qualificados, é validada através do pacto de não concorrência. “A lei abre a possibilidade de o empregador e o trabalhador acordarem entre si numa limitação àquela que é a liberdade de trabalho. Desta forma, as partes podem contratualizar que, mediante o pagamento de uma compensação adequada, o trabalhador, depois de sair da empresa, fica impedido de concorrer com o seu anterior empregador durante um período de tempo”, enquadra ao DN Tiago Cochofel de Azevedo Of Counsel da Área de Trabalho e Segurança Social na na Antas da Cunha ECIJA & Associados. A legislação impõe um teto máximo de dois anos para que os trabalhadores não exerçam funções na concorrência, mas que se poderá estender por mais um ano caso se trate de um cargo detentor de informação especialmente sensível - por exemplo, em matérias de pricing ou de planos de negócios. “À luz do Código do Trabalho são cláusulas válidas e exceções lícitas. Só uma utilização abusiva é que poderá constituir uma potencial conclusão de violação das regras da concorrência”, esclarece o também especialista em labour tech e empresas multinacionais. No fundo, explica, este instrumento visa proteger o conhecimento e o investimento que as empresas fazem nos trabalhadores. O advogado ressalva, no entanto, que o pacto de não concorrência “não pode ser utilizado de forma absolutamente indiscriminada para toda e qualquer função e para todo e qualquer caso”. Há requisitos que devem ser considerados e esta cláusula só poderá ser aplicada em atividades cujo exercício seja passível de causar prejuízo ao atual empregador. Já do lado dos colaboradores as regras podem ser quebradas: se após a saída de uma organização existir o ingresso numa empresa concorrente, o novo contrato de trabalho é válido, mas há um preço a pagar. “É perfeitamente possível violar o pacto de não concorrência. O trabalhador que tenha sido ou que esteja sob esta cláusula pode ser contratado por um concorrente? Pode. Esse contrato de trabalho com um concorrente vai ser ilícito ou nulo impedindo a sua execução? Não, porque o princípio da liberdade de trabalho constitucional prevalece. Agora, há danos que podem ser ressarcidos”, alerta Tiago Cochofel de Azevedo. Simplificando, o mecanismo mais comum aplicado nestes casos é uma musculada indemnização paga pelo trabalhador à antiga entidade patronal. Os valores contratualizados, para acautelar este cenário, são elevados. “As cláusulas, regra geral, são bastante pesadas, mas o código civil acaba por ter um mecanismo anti-excesso. Quando a cláusula penal é manifestamente excessiva e desproporcional, o tribunal pode reduzir o seu valor”, refere o especialista. .Acordos entre empregadores são ilegais, mas prática é recorrente.No seu relatório, a AdC destaca ainda que os acordos de não-solicitação e de não recrutamento são outros dos mecanismos utilizados recorrentemente pelas empresas de IA de forma a limitar a mobilidade laboral. São políticas, ilegais, em que os diferentes players de um setor estabelecem, entre si, que não irão contratar trabalhadores uns dos outros nem aumentar salários (wage fixing). “Estas cláusulas são nulas, violam a lei e são proibidas. O trabalhador deixa de ter potenciais empregadores porque eles acordaram que não irão contratar e o trabalhador deixa de ter a possibilidade de uma melhoria das suas condições laborais, que é aquilo que sucederia num mercado saudável. Estes acordos são diferentes do pacto de não concorrência ou dos pactos de confidencialidade, estamos a falar de dois patamares de análise diferentes - um ilegal e o outro não”, elucida o Of Counsel da Antas da Cunha ECIJA. O artigo 138 do Código do Trabalho é claro ao definir a nulidade do acordo entre empregadores “que proíba a admissão de trabalhador que a eles preste ou tenha prestado trabalho”, mas a realidade é diferente e aa conduta é consolidada. “Nalguns casos são acordos escritos que, sobretudo, são utilizados como forma de forma de dissuadir a contraparte de contratar, mas a maioria das vezes, quando o objetivo é efetivamente, de alguma maneira, cartelizar dentro do mercado de trabalho, regra geral, não existe registo escrito”, acrescenta. Ou seja, muitas vezes as empresas eximem-se de colocar no papel estes acordos, mas há formas de provar, em tribunal, esta concertação: seja através de testemunhas ou de comunicações trocadas entre os patrões de onde se retire este entendimento. .Universitários têm os olhos postos na Europa. Portugal não paga os sonhos que têm para o futuro .Dos tradutores aos matemáticos: as profissões mais ameaçadas pela Inteligência Artificial