Depoimento de Salgado aponta dedo a Machado da Cruz e realça “sucesso” de Cadosch com Eurofin
O segundo dia do julgamento do processo principal relativo ao colapso do Banco Espírito Santo (BES), em 2014, ficou marcado pela tentativa da defesa de Ricardo Salgado, que liderou o BES mais de 20 anos, de impedir a reprodução do áudio das declarações do arguido ao juiz de instrução Carlos Alexandre, em julho de 2015. O tribunal rejeitou o requerimento e passou o áudio, mas problemas com o som levaram a juíza Helena Susano, que preside ao julgamento, a optar pela reprodução do vídeo do depoimento de Salgado no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) do Ministério Público (MP), em julho de 2015, ao então procurador José Ranito (hoje procurador na Procuradoria Europeia), no qual responsabiliza Francisco Machado da Cruz pelos problemas nas contas da Espírito Santo International (ESI), e Etienne Alexandre Cadosch pela criação do Eurofin, realçando “o sucesso” que o gestor suíço teve.
O tribunal reproduziu menos de uma hora do vídeo do depoimento, tempo suficiente para o principal rosto da família Espírito Santo referir que viveu 18 anos fora de Portugal, na sequência das nacionalizações pós-25 de Abril e que o Grupo Espírito Santo (GES) se “reconstruiu” graças às comunidades portuguesas no estrangeiro e que “nunca” houve “dificuldade” em obter capital, tendo participado nas privatizações ocorridas nos anos 1980, conseguindo recuperar o BES por 150 milhões de contos.
Sublinhou que embora o GES fosse um grupo familiar, havia, “até ao colapso”, interesse de outros investidores nos instrumentos do GES. Ao resumir o renascimento dos negócios da família reconheceu que os problemas com ESI, holding do GES para controlar empresas fora do setor bancário, “começaram no final de 2013”.
É aí que aponta o dedo a Machado da Cruz, chamando-o de “commissaire aux comptes” do grupo. O então contabilista responde por 33 crimes no caso BES, tendo-lhe sido imputada a falsificação das contas da ESI. A situação de insolvência da sociedade seria do seu conhecimento desde 2009, atuando, alegadamente, com instruções de Ricardo Salgado para ocultar a dívida e manipular as informações financeiras.
“Nunca tínhamos tido problemas em relação às holdings”, disse Ricardo Salgado, revelando que a “gestão era feita à distância”. “Assinávamos as atas, as contas eram depositadas no Luxemburgo [sede da ESI] e durante 40 anos nunca ninguém nos disse que devíamos consolidar as contas”, afirmou, salientando que Machado da Cruz “disse várias vezes” que não era “necessário consolidar”.
De seguida falou de Alexandre Cadosch, ex-funcionário suíço do GES que também é arguido por 18 crimes, e que esteve envolvido na criação do Eurofin, alegadamente um instrumento criado por Salgado para afastar do grupo potenciais ativos tóxicos e criar sociedades offshore para emitir dívida que seria vendida a clientes do BES, de acordo com a tese do MP.
O ex-líder do BES disse que o Eurofin foi fruto “da emancipação” de um funcionário, realçando que “Cadosch teve muito sucesso” e que o Eurofin “continuou a atividade” após o colapso do império.
Mencionou que o Eurofin prestou serviços a clubes de futebol ingleses e à brasileira Odebrecht, indicando que “quem tratava do Eurofin” era Amílcar Morais Pires e Isabel Almeida, ex-administrador financeiro e ex-assessora do board do BES, respetivamente. No entanto, antigo líder do BES admitiu que o Eurofin foi criado com parte dos recursos do Banco Privée Espírito Santo, que tinha sede na Suíça.
Defesa tentou impedir reprodução de depoimento
Antes de se ver e ouvir o antigo banqueiro num estado de lucidez, Adriano Squilacce, um dos advogados de Salgado apresentou um requerimento para impedir a reprodução do depoimento prestado ao juiz de instrução, Carlos Alexandre, em julho de 2015. Qual o motivo? “O arguido tem o direito de exercer pessoalmente o direito ao contraditório”, referiu o advogado de defesa, lembrando que hoje Ricardo Salgado “não consegue compreender as suas próprias declarações”, devido à doença de Alzheimer e, por isso, “a reprodução das declarações viola as garantias de defesa”.
O tribunal decidiu avançar por entender que a reprodução de um depoimento prestado perante um juiz na fase de inquérito pode ser realizada mesmo que o arguido se remeta ao silêncio ou seja julgado na sua ausência. Acresce que “as declarações podem ser usadas em julgamento, estando sujeitas à livre apreciação do tribunal”, segundo a juíza, que argumentou que “o exercício do contraditório não depende da presença do arguido ou que o mesmo queira prestar declarações”.
Esta quinta-feira o julgamento prossegue com a reprodução do depoimento no DCIAP de António Ricciardi, que presidiu o chamado conselho superior do universo Espírito Santo, que morreu em 2022 aos 102 anos, e é ouvido José Maria Ricciardi, ex-presidente do BESI.