Bruxelas está quase às escuras sobre se países cumprem regras nos gastos do PRR, diz auditor europeu
"A Comissão Europeia [CE] não sabe se os países da União Europeia (UE) conseguem garantir que o Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR, com 650 mil milhões de euros) cumpre as regras dos contratos públicos e dos auxílios do Estado", afirma o Tribunal de Contas Europeu (TCE) numa auditoria especial publicada esta segunda-feira.
O MRR é o fundo criado pela Comissão de Ursula von der Leyen na sequência da pandemia covid-19 para ajudar os países a recuperarem da destruição económica e social imposta pelas duras regras de confinamentos e de restrições às atividades económicas em 2020, 2021 e parte de 2022. Este mecanismo financia os Planos de Recuperação e Resiliência (PRR) nacionais, dos 27 países.
O PRR de Portugal vale mais de 22 mil milhões de euros em subvenções e empréstimos, tendo de tudo ser gasto até final de 2026.
No caso português, devido aos sucessivos atrasos no arranque de projetos e investimentos, o anterior governo (PS) e o atual (PSD) admitiram uma situação algo difícil e arriscada por causa da baixa execução de alguns projetos de proa, sobretudo os maiores e que envolvem grandes obras públicas.
Para o país não perder direito aos muitos e valiosos fundos em causa, foi negociada pelo governo PS uma flexibilização dos prazos para implementar alguns projetos. Mas a situação continua complicada, pelo que está a ser negociada com a CE outra extensão/flexibilização pelo executivo ainda em funções, do PSD.
Na nova auditoria à forma como foram usados os fundos para recuperação da pandemia na UE, o TCE conclui, entre outros pontos, que "o controlo dos contratos públicos e dos auxílios do Estado deixa a desejar", "que a Comissão Europeia aumentou as verificações dos sistemas de controlo nacionais, mas há falhas", e que "alguns países não tentam recuperar o dinheiro mal gasto e mesmo os que o fazem não devolvem os montantes ao orçamento da UE".
O retrato da falta de organização financeira e a pobreza no nível de cumprimento "rigoroso" das regras que regem o uso dos dinheiros públicos em (leis dos contratos públicos e das ajudas de Estado) é algo preocupante, pela descrição do auditor sediado no Luxemburgo.
"Em alguns países da UE, os sistemas de controlo envolvidos têm muitas fragilidades. Além disso, as verificações da Comissão Europeia não abrangem tudo o que deviam. Por isso, o TCE deixa o alerta: as verbas para recuperação da pandemia podem financiar medidas que não tenham passado por controlos rigorosos no que toca a contratos públicos e auxílios do Estado", lamenta o coletivo de juízes ao qual pertence o ex-ministro das Finanças de Portugal, João Leão (indicado pelo PS).
O Tribunal refere que "os 27 países da UE, ao receberem estes fundos, devem assegurar que se cumpre a legislação nacional e da UE, designadamente as regras sobre contratação pública e auxílios do Estado".
Ou seja, "têm de realizar controlos e auditorias para terem a certeza de que os seus sistemas funcionam bem".
Mas, por seu lado, a Comissão Europeia também "deve garantir que os organismos nacionais verificam o cumprimento das regras com regularidade e de forma eficaz".
Ora, está tudo um bocado às escuras ou ao abandono, neste domínio. Segundo o TCE, "o não cumprimento das regras dos contratos públicos e dos auxílios estatais é um problema contínuo nas despesas pagas pelo orçamento da UE".
Nem Bruxelas, nem governos quiseram saber a 100%
Nesta investigação, "nem a Comissão Europeia nem os países deram suficiente atenção a esta questão ao início", considera Jorg Kristijan Petrovič, membro do TCE responsável por esta auditoria.
Segundo o alto responsável, estamos a falar de "centenas de milhares de milhões de euros que ainda faltam investir até ao final de 2026".
"Por isso, esperamos que esta auditoria ajude a proteger melhor os interesses financeiros da União",atirou Petrovič, que é da Eslovénia.
Por exemplo, "são permitidos vários sistemas de controlo do MRR, mas o TCE descobriu que a maioria dos países auditados falhava ao verificar o cumprimento das regras dos contratos públicos".
Mais: "as autoridades nacionais tiveram problemas com a cobertura, a qualidade e/ou o calendário dos controlos" também ao nível do rigoroso respeito pelas leis da contratação pública.
Já ao nível dos auxílios do Estado, "a situação é mais risonha". "Em geral, os controlos estavam em vigor e cobriam os principais riscos", no entanto, "os organismos que fazem as auditorias ao MRR não davam garantias quanto a estes auxílios antes de serem feitos os pagamentos do Mecanismo".
A culpa é de quem?
Segundo o TCE, "uma das razões é a falta de clareza das regras: os países não receberam orientações detalhadas sobre como verificar as regras da UE no que toca a contratos públicos e auxílios do Estado".
Ou seja, "no início, as auditorias da Comissão Europeia centraram-se na fraude, na corrupção e nos conflitos de interesses, e não no cumprimento das regras".
"Desde aí, a Comissão melhorou a sua estratégia de auditoria, mas mesmo assim o TCE descobriu problemas. Por exemplo, as verificações dos sistemas de controlo e auditoria dos contratos públicos não tiveram o mesmo nível de pormenor em todos os países da UE que receberam financiamento do MRR", o que pode colocar uns países em vantagem face a outros.
O TCE destaca ainda "deficiências nas medidas corretivas tomadas pelos países, o que pode prejudicar o seu efeito preventivo".
É possível que haja verbas do PRR atribuídas apesar de ter havido violação da lei
Além disso, "na prática, os países nem sempre recuperam o dinheiro devido pelos destinatários finais" e "quando as verbas são realmente recuperadas, não são devolvidas ao orçamento da União nem subtraídas dos pagamentos seguintes do MRR", denuncia o Tribunal.
O TCE conclui que isto só é assim porque "resulta da forma como os fundos de recuperação da UE foram pensados (com o cumprimento satisfatório de marcos e metas a ser a principal condição para o pagamento)".
No entanto, a instituição "alerta também para o facto de, na prática, tal significar que é possível fazer pagamentos do Mecanismo na totalidade mesmo que as regras dos contratos públicos ou dos auxílios do Estado tenham sido violadas".