Por ambição ou por displicência a família Espírito Santo tropeçou nos próprios pés e, perante uma supervisão titubeante, afundou financeiramente o Banco Espírito Santo (BES). O maremoto provocado em 2014 no Grupo Espírito Santo (GES), que controlava o banco e os negócios em áreas não-financeiras, fez temer o pior nas contas públicas, que quase não resistiram à nacionalização do banco, e consequente divisão em “banco bom” e “banco mau”. O colapso do BES originou um megaprocesso judicial - 18 arguidos a responder por mais de 300 crimes, 733 testemunhas e 135 assistentes - cujo julgamento começou no dia 15, dez anos depois da queda do império Espírito Santo..O DN tem estado no Juízo Central Criminal de Lisboa. De um lado, o MP defende a tese que Ricardo Salgado, líder do BES e GES por mais de 20 anos, foi o principal responsável e estima que os ilícitos em causa geraram prejuízos para o país acima dos 18 mil milhões de euros. Ao lado do MP estão os lesados do BES, que querem recuperar o que perderam. Do outro, a defesa de Salgado interroga como pode ser julgado o antigo banqueiro que hoje sofre de Alzheimer. Os outros 17 arguidos rejeitam responsabilidades..Eis quatro histórias que contam, do último para o primeiro dia, a semana inicial do julgamento..Dia 4: “Os lesados que se lixem”.18 de outubro. O quarto dia de julgamento começou com um caricato “saudações leoninas” de Rogério Alves, um dos advogados dos arguidos, ao antigo presidente do BESI e membro do conselho superior do GES, o único que testemunho na sexta-feira..Para memória futura, José Maria Ricciardi relatou um jantar, entre maio e junho de 2014, em que Ricardo Salgado de quem é primo direito, tentou comprar a sua conivência com a “falsificação das contas”. “Fomos recebidos por ele e pela sua mulher [Maria João], com uma simpatia exagerada. As nossas mulheres nem se davam propriamente bem, mas a mulher do dr. Salgado até disse que deviam de ir ao cinema, ao Cascais Shopping, uma coisa um bocado pateta... No fim do jantar, fomos para o escritório e pergunta-me - ‘O que é que tu queres?” relatou, admitindo que “toda a gente pode especular” que resposta esperaria o ex-líder do BES. Ricciardi disse que pediu mais atenção com o BESI e outro tipo de gestão e que, em troca, Salgado pedira “solidariedade com a família”, ou seja conivência. “Não contas com a minha solidariedade. Nunca fui tido nem achado sobre isto. Não vou ser solidário. Nessa altura, [Salgado] mostrou grande desagrado”, contou, sem conseguir explicar por que razão foi o único elemento da família a desafiar o ex-banqueiro. “Tinham medo de Salgado”, asseverou, mas sem especificar as razões de tal opinião..Outra nota que fica do depoimento de Ricciardi, que prosseguiu o testemunho iniciado na quinta-feira, aprofundou críticas ao Banco de Portugal e ao ex-governador Carlos Costa, ao explicar o motivo para os lesados do BES não terem sido compensados. Segundo o gestor, tinha sido criada uma provisão para pagar a quem comprou papel comercial da ESI e Rioforte, vendido a clientes do BES, e que fora aprovado por um “conselho de administração fictício” sem passar pelos executivos do banco. Em 2014 havia dúvidas sobre se os clientes que o adquiriram seriam pagos pelo Novo Banco, mas o então líder do banco bom, Eduardo Stock da Cunha, garantira no Parlamento que sim. Mas não aconteceu..Ricciardi contou que os “200 elementos da PwC” fizeram “tão bem” a separação dos bens do banco que, “a certa altura”, faltavam “500 milhões em provisões para créditos do Novo Banco”..“O que o governador Carlos Costa e o Fundo de Resolução se lembraram? Vamos tomar a conta dos lesados, porque não era sobre a emissão de títulos, era sobre terceiros - a ESI e a Rioforte - não afetava nada o capital, que se lixem os lesados, e vamos deslocar esse dinheiro para os créditos que faltavam para as contas que a gente fez mal”, afirmou..Perante aquele relato, a defesa de Salgado - liderada por Francisco Proença de Carvalho - optou por não contra-argumentar, avisando que o antigo banqueiro não tem condições de saúde para contestar a testemunha. Mesmo assim, a defesa quis saber se Ricciardi está de relações cortadas com o primo. “O dr. Ricardo Salgado é que está de relações cortadas comigo”, respondeu..Dia 3: O assobio para os primos.17 de outubro. Ao terceiro dia de julgamento ficou no ouvido de que assistiu à audiência um assobio inaudível para o comum mortal. Um assobio a avisar para a situação do BES, em 2013..O dia tinha começado com um depoimento gravado em 2015, no Departamento Central de Investigação Criminal e AçãoPenal (DCIAP), de António Ricciardi, tio de Ricardo Salgado e pai de José Maria Ricciardi que à data do colapso era presidente do conselho superior do GES. Nele, o falecido gestor insistiu que ou não sabia ou não se lembrava de muita coisa, apesar de haver documentos por ele assinados para pagamentos e transferências que, acredita o MP, pagariam “luvas” vinda de offshores. Ainda assim, soube dizer que Ricardo Salgado “é que controlava a gestão do grupo”, que o contabilista do GES, Machado da Cruz, lhe confidenciou que tinha recebido indicações de Salgado para manipular as contas. E “Amílcar Morais Pires [CFO do banco] era um dos homens de que o Ricardo se servia”..Da parte da tarde, José Maria Ricciardi iniciou o que terminou na sexta-feira. Reiterou desconhecer a manipulação das contas antes de dezembro de 2013 - e que só teve provas em 2014 - e que então tinha avisado o BdP. “Carlos Costa assobiou para o lado e disse-me para ficar quieto. [...] Disse que eu já tinha feito pessimamente com as declarações nos jornais e que a guerra com o primo [Ricardo Salgado] estava a perturbar o sistema financeiro. E eu disse-lhe se não achava que eu, como administrador, não devia comunicar”, relatou o gestor, ao contar que se tinha queixado de Salgado e do BES antes do colapso..Ricciardi foi questionado sobre e-mails, atas e transcrições de conversas com Salgado. Numa delas, o ex-líder do BES dizia: “Não sei se estão a perceber o filme que está a acontecer, nós estamos a transferir [dinheiro] dos clientes e a pedir uma transferência do passivo da ESI para a Rioforte”, lia-se..Dia 2: O grande ausente.16 de outubro. Antes do “ataque” do clã Ricciardi, o tribunal ouviu Ricardo Salgado. Não o que sofre de Alzheimer, mas o banqueiro lúcido de 2015. Primeiro através de um depoimento dado ao juiz de instrução Carlos Alexandre, mas problemas no áudio da gravação levaram o tribunal a optar pelo depoimento gravado no DCIAP ao procurador José Ranito, cujo conteúdo era idêntico. A defesa de Salgado tentou impedir a reprodução do depoimento, alegando que o arguido não está em condições de contraditar, mas o tribunal rejeitou, porque não retirava condições de defesa a Salgado..No depoimento, o antigo banqueiro aponta o dedo a Machado da Cruz pelos erros nas contas. “Nunca tínhamos tido problemas em relação às holdings. A gestão administrativa das holdings era feita à distancia, de tal maneira que assinávamos as atas, as contas eram depositadas no Luxemburgo e durante 40 anos nunca ninguém nos disse que devíamos consolidar as contas. Nunca houve das autoridades luxemburguesas um alerta para consolidar as contas, apesar de a Espírito Santo Financial Group estar dentro da ESI”, disse..Dia 1: O olho negro.15 de outubro. O momento do primeiro dia foi a chegada de Ricardo Salgado ao Campus de Justiça, rapidamente interpelado por alguns lesados do BES e rodeado de jornalistas que procuravam reações de quem já foi o “dono disto de tudo”. Impossível. O homem que entrou no tribunal, perante o juiz, só conseguiu dizer o nome e o dos pais, apesar de um lapso nos apelidos da mãe. Lembrava-se que fora banqueiro e que morava em Cascais, mas não sabia a morada. Saiu da sala, após a identificação. Não deverá voltar mais. À saída, o advogado de defesa referiu que se abriu “uma página negra” na justiça, por querer julgar um homem que já não está capaz. E o que ficou foi a imagem de alguém de olhar ausente, olho direito negro, sem grandes certezas do que estaria a acontecer ao redor. Mas há uma década, o mesmo homem, segundo o MP, “logrou apropriar-se do património de terceiros”. .O julgamento prossegue dia 22, depois de o MP ter pedido na sexta-feira o estatuto de maior acompanhado para o antigo banqueiro. “O tribunal constata que a pessoa não está no uso de todas as faculdades e designa uma pessoa que substitua a pessoa diminuída. Pergunta-se ao beneficiário, se conseguir, dizer quem quer ser o acompanhante e pode ser a mulher. Se não for possível, o tribunal pode não aceitar também a escolha e nomear outra”, disse a advogada Ana Pires, coordenadora do Departamento de Família e Menores da RSA, citada pela agência lusa, clarificando que no limite e em abstrato pode ser alguém exterior à família. A defesa congratulou-se que o MP tenha "reconhecido a situação" de incapacidade, mas considera que o estatuto de maior acompanhado não resolve o problema.