Em casa é que se come bem?
Impressiona qualquer um a qualidade e o requinte que alguns dos melhores restaurantes estão a oferecer nos seus serviços de entrega em casa e de take-away.
A família Jetson corporizou nos anos 60 um conjunto futurista de cenários nos míticos desenhos animados da dupla norte-americana Hanna e Barbera. Os mais relevantes eram sem dúvida a libertação da gravidade, a mobilidade total e... o alívio das tarefas domésticas. Numa altura em que "home delivery" e "take away" se tornaram centrais no quotidiano, o momento é bom para palpar a bondade do sonho.
Relacionados
A simpática Rosie, a incerta e insegura empregada doméstica dos Jetsons a que todos estavam habituados e por isso se recusavam a trocar por um modelo mais recente, é a chave. Quando a série foi emitida nos EUA, entre 1963 e 1965, ainda não tínhamos sequer aterrado na lua e já o pequeno Elroy acampava com os seus camaradas escuteiros na lua, como fosse a coisa mais evidente e banal que se podia fazer.
Dentro de casa estavam nos seus ambientes controlados, fora de casa - incluindo a lua - tinham umas bolas de vidro à volta da cabeça. Utilizavam abundantemente esteiras rolantes, principalmente para levar o cão Astro a passear e tinham uma máquina de produção de comida. Programava-se o jantar e o almoço consoante as vontades de cada um e imediatamente a mesa estava pronta para a reunião familiar. Rosie resmungava perante o modo de vida da família e reclamava perante quase tudo. A vida de um Jetson era tranquila mas as máquinas estavam esgotadas por excesso de trabalho.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
O luxo acessível que era ainda há pouco encomendar comida para entrega em casa passou de solução de recurso a modus operandi. A assépsia é a palavra de ordem e os restaurantes foram esmagados por uma sequência de exigências tal, que o take away - encomendar comida num restaurante e passar depois a buscar e o home delivery - encomendar desde casa são as duas únicas formas de relacionamento nos períodos de fim de semana.
Estamos na situação da substituição do robô Suzie, todo e qualquer contacto físico com o staff passou a ser punido. Situação sem dúvida nova, que imediatamente instalou a debandada definitiva das salas dos restaurantes e a que os profissionais estão a reagir negativamente. O argumento base é contundente: os restaurantes foram forçados a remodelações sem precedentes, para poder albergar os seus clientes em total segurança, e de repente recebem este golpe de misericórdia que é impedi-los de albergar seja quem for nos seus espaços aos fins de semana.
Enquanto não houver vacina, infelizmente é aquilo com que podemos contar. Enquanto estamos no domínio das determinações redentoras, contudo, há que atentar para o fenómeno do encerramento definitivo dos chamados restaurantes de bairro, de estrutura familiar e que no fundo alimentavam famílias inteiras.
A família Jetson, aparentemente sem problemas de saúde nem de finanças, nunca teve de se ocupar com quem oficiava por detrás do balcão nos restaurantes, o que de resto se compreende; a série é sobretudo utópica. O sector da restauração tem respondido de forma exemplar ao que dele é pedido, o que me deixa muito satisfeito, pois ainda há menos de três décadas era pautado sobretudo pela informalidade. Hoje até os sistemas de facturação e tributação funcionam online e a transparência nos processos é total. Está apenas em causa a criação de valor e a liberdade de movimentos dos empresários.
Em casa é que se come bem
Impressiona qualquer um a qualidade e o requinte que alguns dos melhores restaurantes estão a oferecer nos seus serviços de entrega em casa e de take-away. Embalagens ultra-higiénicas, as sequências e sugestões de serviço das refeições, nalguns casos até molhos e fundos culinários para que a comida seja o mais próximo possível do que se experimenta no restaurante, nada é deixado ao acaso.
Se pensarmos no caso de um arroz de marisco, por exemplo, percebemos que o esforço vai para lá do estóico, justamente por se tratar de um prato que não admite sucedâneos. E quando podíamos pensar que o preço é estratosférico, temos a agradável surpresa de praticamente não onerar o cliente pelo aspecto da entrega em casa. O caso relatado diz respeito ao Solar dos Presuntos, que está a dar mostras da grande empresa que é também.
A par deste fenómeno, temos um outro, que é a nova oferta de comida. Acabo de terminar uma refeição de um dos novos no mercado, chamado A100. Vem de "acém" e consta de hambúrgueres e outros preparados com base de carne. Atendimento perfeito, respeitam os pontos de cozedura da carne que pedimos na altura da encomenda. Batatas fritas irrepreensíveis, molhos profissionais mas sem o toque sintético desagradável da fast food típica e até a temperatura é uma agradável surpresa.
Entre os principais produtores de comida para consumir em casa estão de resto empresários de primeira linha da restauração. Nem tudo se resolve com arruadas e fogueiras na rua, a melhor forma é aquela que nos poupa a nós, consumidores, de lutas violentas, e nos arregimenta para o argumento insubstituível do trabalho. Podemos e devemos apoiar todos os novos heróis que estão a fazer tudo o que está ao seu alcance para que a vida permaneça o contínuo suave de convívio em família a que nos habituámos.
Tenho sabido de desacatos entre estafetas e mesmo entre estafetas e clientes, que depois dão origem a queixas veementes e contundentes. Claro que isso é lamentável, e claro que a prazo se irá dissipar. Não devemos é pensar que a situação actual se vai resolver em breve, com os olhos postos na vacina por que todos ansiamos. É quase certo que não vai ser assim, até que a pandemia seja declarada extinta ainda muito home delivery andará pelas ruas das cidades.
Nada de baixar os braços nem desvalorizar a importância da mesa nas nossas casas. Tenho aconselhado todos a por a mesa como sempre, para almoçar e jantar, manter ao alcance os vinhos do nosso contentamento, bons copos, pão e petiscos prontos. Assim, quando chegar a comida que encomendámos retiramos das embalagens de transporte, aquecemos o que precisa de ser aquecido - banho maria é sempre preferível ao microondas - e sentamo-nos à mesa como sempre. Vai valer a pena o esforço, e uma parte importante das nossas vidas vai manter-se como espaço pacífico de reunião. E assim, a casa vai continuar a ser o sítio onde melhor se come.
Surpresa não é total
De certa forma, temos vindo a construir peça a peça esta nova realidade. Desde o final dos anos 70, quando a rede francesa minitel, operada estritamente sobre a rede telefónica nacional, permitia já ter acesso a um conjunto grande de serviços, que havia sinais claros de mudança de paradigma para um funcionamento em rede. Desde pedir um táxi a fazer uma reserva de mesa num restaurante, comprar bilhetes para espectáculos, ou simplesmente encomendar livros, foi a verdadeira precursora da rede internet que hoje conhecemos.
Nessa altura, havia mais detractores que adeptos, mas era evidente o caminho seria a democratização do computador e a explosão da oferta de serviços de ligação de todos a tudo. Quem hoje não participa numa rede social não existe, pelo menos podemos contar com esse lado francamente positivo da existência. Somos rede, estamos em rede e o que era quimérico há 30 anos tornou-se absolutamente vulgar e indiscutível. Já nem conseguimos imaginar como que seria se existisse apenas o telefone fico como meio de comunicação.
Assim, no conforto dos lares, organizamos a vida, as compras que temos de fazer e os pequenos luxos a que nos vamos permitir. E não se pense que apenas a grande distribuição consegue suprir a procura global de produtos de primeira necessidade. Há milhares de pequenos agricultores que todas as semanas - ou dias - anunciam a fruta, legumes que têm disponível e logo os clientes habituais aparecem. Normalmente, uns e outros esgotam as existências e tudo vai avançando num regime tranquilo de sustentabilidade e proximidade, que visionário algum ousou sequer prever. Em vez de mais distantes, estamos bem mais próximos.
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal