Transportadora da Carris Metropolitana paga salários abaixo da lei a imigrantes

Salário dos motoristas imigrantes da Carris Metropolitana é inferior ao previsto por lei. Trabalho suplementar descontado para pagar dívida dos funcionários não foi declarado.
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A Auto Viação Feirense estará a violar a contratação coletiva, ao pagar salários inferiores ao previsto por lei, e a cometer fraude fiscal e contributiva ao não declarar trabalho suplementar relativamente a cerca de 20 motoristas imigrantes que recrutou, no ano passado, no Brasil, para operar parte da concessão pública da Carris Metropolitana, entre Moita e Setúbal, que foi atribuída à espanhola Alsa.

O acordo coletivo de trabalho, celebrado entre a Associação Nacional de Transportes de Passageiros (ANTROP), onde está filiada a Feirense, e a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores dos Transportes e Comunicações (FECTRANS), estabelece que o salário de entrada de um motorista de serviço público é de 1018 euros para este ano. Mas a transportadora, do distrito de Aveiro, está a pagar 942 euros brutos mensais aos imigrantes, ou seja, menos 76 euros, segundo um recibo de vencimento de julho a que o DN/Dinheiro Vivo teve acesso. Apesar deste comprovativo, o presidente do conselho de administração da Feirense, Gabriel Couto, garantiu ao DN/DV que "a empresa está a cumprir com o acordo coletivo e a pagar 1018 euros de ordenado base de entrada".

O valor das horas extraordinárias e o trabalho realizado em feriados ou dias de descanso semanal obrigatório e complementar também está a ser remunerado abaixo dos montantes previstos no instrumento de regulamentação coletiva, adiantou ao DN/DV Anabela Carvalheira, da FECTRANS. A dirigente sindical revela que "a Feirense optou por pagar um valor fixo de seis euros por cada hora extra, quando a contratação coletiva estabelece que a primeira hora deve ser paga a 50% da retribuição normal e a segunda e seguintes a 75%, o que daria mais de oito euros por hora". No caso do trabalho prestado em dias de feriado ou dias de descanso semanal, a compensação deveria ter um adicional de 200%, "mas a empresa também está a pagar abaixo desse montante" àqueles imigrantes, acrescenta Anabela Carvalheira. Sobre esta matéria, e em resposta escrita enviada ao DN/DV, a advogada da Feirense, Maria Teles Valente, reconheceu o erro e afirmou que "a questão do pagamento das horas extraordinárias já está a ser resolvida pelo departamento de recursos humanos em conjunto com a contabilidade da empresa, pelo que todos os aspetos relacionados com os salários dos trabalhadores estarão devidamente clarificados em breve".

Só por esta discriminação remuneratória entre nacionais e imigrantes, a Feirense "não só está a violar a contratação coletiva como também o artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual "para trabalho igual salário igual"", esclareceu ao DN/DV a advogada, especializada em leis laborais, Rita Garcia Pereira. Para a jurista, em causa estão já "duas contraordenações muito graves". E cada uma pode dar multa até 61 200 euros.

O contrato assinado entre 21 trabalhadores brasileiros e a Feirense estabelece que até 1/6 (17%) do salário pode ser retido para pagar adiantamentos da empresa àqueles motoristas para cobrir despesas com passagens de avião para Portugal, rendas com habitação ou com a legalização desses imigrantes. A FECTRANS considera ilegal a cláusula, contudo, o Código do Trabalho prevê, no artigo 279.º, a possibilidade de descontos ou retenções sobre a remuneração para "abono ou adiantamento por conta da retribuição".

O enquadramento até parecia estar dentro da lei, mas a Feirense decidiu não aplicar o disposto no articulado. "Os trabalhadores têm vindo a pagar os adiantamentos através da execução de horas extraordinárias, de forma a não ser efetuado o desconto de 1/6 no salário dos mesmos, na medida em que tal prejudicaria claramente o trabalhador, colocando-o numa posição precária", esclarece a transportadora. Ou seja, em vez de descontar 1/6 do ordenado, os motoristas pagam a dívida através de horas extra que não são remuneradas. Aqui há outra infração. Como o trabalho suplementar não foi declarado nem processado no recibo de vencimento, a transportadora não pagou as contribuições sociais relativas às horas extra, cujo montante iria somar ao salário para aplicar a Taxa Social Única (TSU) de 23,75%, devida pela empresa. Do mesmo modo, o motorista não descontou 11% para a Segurança Social nem reteve para efeitos de IRS. "Esta situação pode configurar fraude contra a Autoridade Tributária e a Segurança Social", indicou ao DN/DV Eduardo Castro Marques, sócio fundador da Dower Law Firm. Além disso, "os trabalhadores não têm forma de saber quanto estão a abater à dívida", sublinha a dirigente da FECTRANS.

O CEO da Feirense, Gabriel Couto, confirmou que "não foram feitos descontos relativamente ao trabalho suplementar". "A Feirense não pagou contribuições sociais sobre essas horas extra, mas os trabalhadores também não descontaram", frisou, acrescentando que "as horas extra são pagas sob a forma de ajudas de custo". "Esta situação também é ilegal, porque as ajudas de custo estão isentas de IRS até um determinado limite, enquanto o trabalho suplementar é totalmente tributado, ou seja, poderá haver aqui uma fuga aos impostos", esclarece Eduardo Castro Marques.

Em jeito de balanço, Gabriel Couto afirmou que, "dos 21 brasileiros, dois foram-se embora, havendo agora 19 motoristas". "Desses, 10 já pagaram a dívida por via do trabalho suplementar, enquanto os restantes cinco ainda têm montantes por saldar porque se recusam a efetuar horas extraordinárias", revelou, acrescentando que, neste caso, "a empresa terá de acionar a cláusula do contrato e descontar 1/6 do salário". O dono da Feirense assinalou ainda que "os motoristas estão contentes e gostam de trabalhar na Feirense", garantindo que a empresa "tudo fez para os acolher bem".

A FECTRANS tem uma posição diametralmente oposta e vai avançar com um pré-aviso de greve dos trabalhadores da Feirense. A federação sindical, afeta à CGTP, decide hoje se a paralisação será nacional ou limitada aos motoristas da empresa que operam na Carris Metropolitana.

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