Pedro Bogas: "Passe gratuito em Lisboa fez duplicar a procura na Carris"

Presidente da empresa de transporte público prevê investimento de 170 milhões para ter frota mais sustentável e dar melhor resposta à cidade. Está preocupado com atraso no plano de mobilidade do governo para a ​​​​​​​JMJ, mas garante que os seus motoristas estão prontos e motivados.
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Pedro Bogas nasceu em 1973, é licenciado em Direito pela Universidade Católica, pós-graduado em Direito do Consumo, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e tem um longo percurso em empresas da administração pública. Passou por empresas como a Infraestruturas de Portugal, a Transtejo, o Metropolitano de Lisboa, entre outras e é presidente do conselho de administração da Carris, empresa de transporte público, tutelada pela câmara municipal de Lisboa desde 2017. É membro da Comissão de Recursos Humanos da União Internacional dos Transportes Públicos. Foi adjunto de Sérgio Monteiro, secretário de Estado dos Transportes, no governo de PSD/CDS-PP entre 2011 e 2015, que privatizou na altura o Metro e a Carris. Conhece a gestão da empresa desde 2012, ano em que se tornou vogal da administração da Carris, que dirige há um ano.

É inevitável começar esta entrevista pelo descontentamento que os constrangimentos das obras do metro estão a provocar em Lisboa... A Carris não pode aumentar mais a capacidade de resposta de autocarros a quem se vê agora sem alternativa de transporte?
Fomos surpreendidos com essa questão. O Metro deu-nos nota já muito em cima de que iria interromper a linha Campo Grande-Cidade Universitária e percebemos que teríamos de reforçar a nossa oferta nesse local da cidade. Nunca pensámos porque isso é impossível tendo em conta os nossos recursos, que tivéssemos de substituir o metropolitano. Na verdade, nem o conseguiríamos. Por alguma razão o Metro existe: é um transporte muito mais caro, que implica um investimento muito maior mas é necessário e não pode ser substituído pelo transporte rodoviário. Portanto não estamos dimensionados para fazer a substituição. Temos uma frota e um efetivo de motoristas dimensionado para a oferta que oferecemos e podemos fazer alguns reforços pontuais, claro. E fizemo-los até ao limite da nossa capacidade. Mas reforçar e substituir é diferente. Por isso fizemos saber ao metro e ao governo - até por via da CML, o presidente da Câmara de Lisboa estava mesmo muito preocupado com o que estava a acontecer no Campo Grande - que o transporte alternativo teria de ser contratado. O metro tinha essa consciência, tentou contratá-lo, mas está muito difícil, porque não há motoristas disponíveis no mercado, nem autocarros, sobretudo para a operação durante a semana, em período tão longo. Tornou-se um problema, que tentámos minimizar e conseguimos pela nossa participada Carristur, e contratados pela câmara criar um serviço de shuttles, um vai-vem de seis veículos que fazem neste momento o percurso entre o Campo Grande e a Cidade Universitária. E funciona com grande frequência porque é um percurso curto, o que permitiu melhorar a circunstância. O metro também veio a conseguir colocar cinco autocarros no mesmo percurso e no Lumiar e isso tem vindo a suavizar a pressão.

Mas continua a haver problemas.
A pressão continua a existir, evidentemente, porque é uma linha que está cortada.

Conhece bem o antes e depois da privatização de Metro e Carris. Hoje defenderia o mesmo caminho, ou não haverias mais-valias se a tutela fosse conjunta?
São duas realidades. Uma é a subconcessão a privados - foi uma opção do acionista na altura; o governo estava pressionado pela troika, que entendia que as operações deviam ter operacionalização privada, até porque a CE é defensora da concorrência. Havia essa imposição e o processo decorreu, sem qualquer impugnação, os contratos foram celebrados e o governo seguinte entendeu reverter, que também é uma opção legítima. Relativamente à administração conjunta: eu já estive nos dois modelos. Já fui administrador do Metro, da administração conjunta Metro-Transtejo-Carris e sou agora presidente da Carris. E posso dizer que ambos funcionam bem, desde que haja empenho e competência na gestão. Há algumas sinergias que a junção das empresas proporcionam, mas os dois modelos funcionam bem.

Mas defenderia hoje uma Carris privada? Era mais fácil resolver problemas?
Não tenho essa ideia, acho que estamos a fazer um bom trabalho.

Olhando para o serviço da Carris, como está a oferta e procura? Já se voltou ao nível pré-pandemia?
A evolução tem sido muito boa. Quando chegámos, sentimos que esse era o maior desafio. Era um tempo muito difícil, porque estávamos a sair da pandemia e tinha começado a guerra da Ucrânia há três meses, que teve um impacto muito forte e direto na nossa atividade.

Por causa dos combustíveis.
Sim, especialmente do gás: entre 2021 e 2022, o preço do gás subiu 256%, é uma fatura muito relevante. Mas também com impactos na entrega dos autocarros. Por exemplo, estamos à espera de 24 articulados que estão a ser fabricados na Polónia, pela MAN, e já deviam ter começado a chegar mas atrasaram-se porque as duas fábricas de componentes da empresa são na Ucrânia e estão naturalmente paradas. O grande desafio neste contexto tão desfavorável era conseguir manter a sustentabilidade macroeconómica da empresa, manter a eficiência e qualidade do serviço, com repercussão na procura, e manter a cultura e o espírito da companhia. No que respeita à oferta, houve um crescimento próximo de 3%, mas o importante é a recuperação da procura, que é muito significativa. Terminámos 2022 perto dos 130 milhões de passageiros, 90% de 2019. E neste ano, com os números que temos registado, podemos apontar para os 146 milhões, o que significa que ultrapassamos os 137 milhões de 2019. São números francamente positivos.

Anunciou novas rotas em estudo para rever a rede da Carris. Em que fase está esse processo?
Estamos a preparar o concurso para o estudo ser feito, que é crucial. A rede tem quase 20 anos e está já desadequada da cidade e do serviço que queremos oferecer. Só se tem feito remendos. E há a questão do Metro, que assegura a coluna vertebral da mobilidade em Lisboa. A Carris tem de ser complementar.

Mas o plano vai atrasar-se?
Não, mas temos de levar em linha de conta que passa a haver uma linha circular, que há expansão da rede - isso mostra a importância do rebatimento. O processo é sempre difícil e a comunicação é essencial. Ainda agora tivemos alguma dificuldade em iniciar uma nova rede porque a cidade tem vários constrangimentos, obras em curso. Isso pode atrasar a entrada da nova rede.

Que balanço faz dos passes gratuitos, agora que os utentes também podem usar o Navegante com a gratuitidade das bicicletas?
Os números são excelentes. Tive agora acesso aos valores mais recentes e revelam isso: há 80 mil adesões quer nos menores de 23 quer nos maiores de 65 anos. E ainda não tínhamos a evidência do impacto dessas adesões na procura, mas agora temos e posso dizer que duplicou. Tínhamos 30 mil e hoje são quase 70 mil passes validados nesses segmentos. A gratuitidade foi uma medida excelente e de vanguarda europeia no fomento da mobilidade e sustentabilidade ambiental. É um sucesso e um excelente exemplo para a Europa.

E a desmaterialização dos passes pode avançar em breve - os bilhetes em smartphone?
Temos dois grandes projetos no campo da desmaterialização da bilhética em fases de grande maturidade. Para o smartphone, estamos a desenvolver com a Via Verde uma app que já está em piloto e já poderia até entrar em funcionamento para a tarifa de bordo, mas queremos - e aqui envolvemos também a empresa de Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML) - é que entre também para os títulos combinados. É esse passo que queremos dar ainda neste ano, que seria uma grande evolução. O segundo projeto é o cartão bancário - já fizemos testes e está avançado. Não quero comprometer-me com prazos, mas o nosso objetivo era avançar ambas até ao final do ano.

Vem aí a Jornada Mundial Juventude (JMJ), que trará a Lisboa 1,2 milhões de pessoas. O que já está planeado em matéria de transporte em autocarros?
Esse é um tema que nos preocupa. Cabe ao governo a elaboração de um plano de mobilidade e foi contratado um consultor que está a trabalhar nisso com a equipa de missão. Pediram-nos diversos elementos e facultámos toda a informação. Estão a decorrer reuniões e contactos, mas ainda não temos conhecimento do plano.

Ainda não viram o plano de mobilidade?
Não. Esperamos que venha a ser rápido, mas essa tarefa ficou do lado do governo. Do nosso, o que nos esforçámos logo por garantir foi a máxima capacidade de oferta nessa altura - que é precisamente quando tradicionalmente temos a mínima oferta. Negociámos um acordo com as organizações sindicais que prevê um abono de penosidade para os trabalhadores, que terão muito mais pressão e terão de ser compensados. O acordo foi celebrado com as cinco estruturas sindicais que representam os trabalhadores da Carris e mereceu o acordo de todos. Estamos seguros quanto à máxima disponibilidade e motivação dos nossos trabalhadores.

Em que é que consiste esse acordo, no fundo para os convencer a não tirar férias nessa altura e sujeitarem-se a esse aumento de pressão?
Serão mais bem remunerados: o valor hora acresce 10 euros, nesses seis dias. Foi uma solução bem recebida. Nós temos apostado muito nas pessoas - demos o maior aumento de que há memória na Carris (a expressão é de um dos dirigentes sindicais) no ano muito difícil que foi 2022, em que as pessoas estavam a sentir dificuldades e estávamos a perder trabalhadores, porque hoje há mais dificuldades de recrutamento e de fidelização à empresa. Dentro das nossas capacidades e recursos, melhorámos significativamente as condições dos nossos trabalhadores e assinámos acordo com quatro das cinco organizações sindicais - e a que não assinou continua em negociações e temos expectativas de também aí chegar a acordo.

Mas quantos motoristas e veículos estarão a circular a mais?
Não posso dizer ainda porque estou à espera do plano de mobilidade. O plano vai dar informações importantes. Que zonas da cidade estarão encerradas e em que dias e períodos, por exemplo - isso tem impacto nas nossas carreiras porque obriga a desvio de percursos -, perceber se temos de fazer serviços especiais... só com o plano podemos perceber que oferta disponibilizar.

Mas de que prazo precisa para efetivar a resposta?
Quanto mais cedo, melhor. O desejável seria tê-lo nos próximos dias. E como disse, estamos preocupados porque isso condiciona muito a operação para esse período. Isso não ficou connosco, a César o que é de César...

No último fim de semana, a associação ambientalista Zero comunicou que há uma redução lenta dos gases com efeito de estufa no geral e duas áreas em que aumentaram: a agricultura e precisamente os transportes ( cita dados da Agência Portuguesa do Ambiente). O setor dos transportes representa mais de 28% ou seja mais do que o setor da energia (15%) e a agricultura (13%). Isso não é um contrassenso quando empresas como a Carris anunciam empenho na descarbonização?
Dito assim, parece, mas eu não sei qual é o termo de comparação - se for o ano de pandemia... é evidente que há um acréscimo. Mas temos tido grande empenho na descarbonização, estamos a fazer uma profunda remodelação da frota. Em 2026, que é o horizonte deste plano de atividades, teremos 80% da frota de autocarros em energias limpas. E também apostamos nos elétricos: contratámos a aquisição de 15 articulados, uma nova aposta no modo elétrico, que não se fazia desde 1995. Já chegou o primeiro protótipo para testes e contamos iniciar a operação no verão. É um investimento de 170 milhões na descarbonização da frota.

E será possível concretizá-lo na atual conjuntura?
Está no plano e temos muita fé que o cumpriremos. Não posso esconder que a conjuntura - nomeadamente as entregas - pode atrasar um prazo ou outro, mas contratámos a aquisição de 30 autocarros elétricos que vão começar a chegar no verão, lançámos o concurso e já adjudicámos 14 autocarros mini-elétricos, os nossos primeiros, que vão fazer as carreiras de bairro e mantemos a aposta de renovação.

Também previam os 24 articulados a gás...
Também vão chegar, mas são os tais da Polónia. Estamos a diversificar. Consideramos também o gás natural porque ainda significa um custo muito menor: um autocarro standard custa 200 mil euros, um elétrico são 400 mil e não tem a mesma autonomia. Vamos comprar 75 standards até fim do próximo ano e duplicar a frota de autocarros elétricos - com esses 30, passam a 45, mais os 14 minis. E estamos a estudar a introdução do hidrogénio com um grupo de trabalho na direção de inovação. Fizemos já contactos, mas são ainda muito caros e há questões no abastecimento. Temos um piloto, para 2024. Mas não abandonamos a diversificação.

Na descarbonização há também o fator da articulação. Como se evita que entrem tantos carros em Lisboa todos os dias?
Nós somos um agente dessa missão, mas ela está nas mãos da TML, que tem a visão metropolitana. Mas estamos coordenados, queremos fazer o novo plano de rede para criar uma melhor coordenação através de novos interfaces que estão em estudo e esse planeamento será aberto aos nossos stakeholders. Não esquecemos que estamos integrados na área Metropolitana. Com a procura que temos, retiramos hoje da cidade 120 a 130 mil carros por dia, e se voltarmos à procura histórica que se registou na primeira década deste século - este ano já nos aproxima desses valores - podemos chegar a 160 mil carros a menos, só a Carris.

Mas o que facilitaria essa articulação?
Desde logo os interfaces: as pessoas não gostam de fazer muitos transbordos, por isso eles têm de ser muito eficientes. Se a pessoa sentir que a viagem é cómoda, segura e eficiente em termos de tempo, além de muito mais económica, vai seguramente trocar o transporte individual pelo transporte público. O nosso plano de mobilidade assenta em dois pilares: a sustentabilidade e a melhoria da eficiência e da qualidade de serviço. A experiência de viagem dos nossos passageiros foi analisada e identificámos seis momentos-chave que estamos a otimizar para essa experiência ser muito boa e as pessoas migrarem do transporte individual para o público - é esse o nosso maior concorrente, os outros operadores são complementares.

Que momentos são esses?
Termos uma boa oferta, regular; melhorar a informação ao clientes, nomeadamente através das aplicações, para permitir planear a viagem; ter bom acesso ao serviço, a questão da desmaterialização; ter bom acesso económico com medidas como a gratuitidade; depois, o transporte precisa de motorista ou guarda-freio por isso queremos tê-los com excelente formação (até porque são a nossa cara); depois a vertente da segurança, em que temos dado passos importantes (somos o primeiro operador português de transporte de passageiro certificado); e por fim a eficiência da viagem. Se a viagem for muito longa, a pessoa vai continuar a recorrer ao individual.

Falou na dificuldade de conseguir mão-de-obra. Quantos motoristas a mais vão contratar - e têm tido de procurar lá fora?
No ano passado, recrutámos 100 tripulantes, sem ter de ir lá fora como sucedeu com outros operadores - porque somos mais competitivos no mercado. Neste ano, serão 110, com uma diferença: antes tínhamos esse cap independentemente do número de saídas, agora são 110 a mais, o que vai garantir um crescimento real de motoristas permitindo-nos ultrapassar o total de 2 mil, que é aceitável para a nossa oferta e garante flexibilidade.

E já a fazer contas à JMJ?
A JMJ não vai implicar contratações. Nós temos alguns motoristas já em formação para a JMJ, mas o grosso destes 110 não estará ainda pronto nessa altura.

Quando acha que vai conseguir atingir os 150 mil carros a menos na cidade por dia?
Depende do crescimento da procura, mas com o crescimento da oferta, uma melhor oferta, com a renovação da frota que estamos a fazer, e aqueles fatores todos que mencionei que vão trazer mais pessoas, julgo-o que podemos ter muito sucesso nos próximos anos. Já temos 140 milhões de projeção para este ano com os passageiros dos quatro meses.

Há mais turistas entre clientes?
Sim, e têm muita expressão na tarifa de bordo, que nos dá receita significativa. Mas na análise ao tipo de títulos vê-se que a recuperação é feita com muitos cidadãos de Lisboa e dos municípios da Área Metropolitana, passageiros correntes. O cenário económico que vivemos também ajuda, dá-nos esta oportunidade - a que a gratuitidade ajuda muito - de atrair pessoas para o sistema. Mas cabe-nos a nós mostrar que temos essa capacidade e qualidade e fidelizar esses clientes ao serviço.

Como é que estão as contas da Carris?
Para quem esteve nestas empresas antes, estão muito boas... basta dizer que a Carris não tem dívida, porque aquando da municipalização da empresa ela ficou do lado do Estado. Depois, evidentemente que o novo tarifário, passes, aumentos da procura, os resultados comerciais são bons.
Esperava 1,3 milhões...
Esperávamos em 2022... nós chegámos em maio e como disse um dos grandes desafios que enfrentávamos era o da sustentabilidade económica, temíamos não conseguir os resultados orçamentados, mas correu muito bem, tivemos resultado positivo de 3 milhões no final do exercício. E não foi mais porque quisemos, do ponto de vista contabilístico, resolver algumas situações e criar provisões que considerámos necessárias. É essa a nossa missão. Quando se fala em sustentabilidade económica, a nossa missão é manter a empresa equilibrada, não voltar a ciclos de resultados negativos mesmo com este nível de investimento. Não é objetivo do nosso acionista termos grandes lucros, até porque somos subsidiados desde logo pela prestação do serviço público. Temos de prestar serviço bom, de qualidade e que seja equilibrada do ponto de vista económico.

Que impacto têm tido os custos de contexto?
Continuamos a sentir impacto da subida de custos. Nós tivemos entre 2021 e 2022 um crescimento de 30% nos combustíveis - no gás foram os tais 256%, mas o total ficou nos 30% -, o que tem uma expressão muito significativa nos custos, porque são gastos que pesam 20% no global. Mesmo assim conseguimos resultado líquido positivo.

Mantém a intenção de ter um forte ciclo de investimento até 2026?
Sim, como disse, é o que está no plano e estamos a trabalhar ativamente na renovação da frota não abrandámos o ritmo. Continuamos a angariar os recursos financeiros para possibilitar a execução desses planos, contando com algum financiamento comunitário também. No caso dos elétricos articulados, não estava previsto mas estamos a tentar junto do PO SEUR ir buscar algum financiamento. Estamos a fazer este esforço porque a Carris precisa de renovar a frota. Tem um conjunto de autocarros em fim de idade de vida útil e não faz sentido substituí-los por outros a diesel - é uma aposta imperativa para a empresa.

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