O Alentejo é bem conhecido pelos seus vinhos. Responsável por 20% da produção de vinho nacional dos últimos oito anos, é também uma região que, especialmente este ano, atravessou um período de seca extrema. Ainda assim, apesar de todas as dificuldades, conseguiu obter um ano positivo, com aumento de vendas e de exportação. É também, até agora, a única com um programa oficial de sustentabilidade. Numa conversa com o Diário de Notícias, Francisco Mateus, presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA), abordou os principais números e desafios de uma região assolada pela seca e pelas dificuldades de empregabilidade, mas, também, com um produto conhecido a nível nacional e internacional..Nos últimos três anos o mundo tem enfrentado sérias dificuldades (pandemia, guerra, inflação). Em que medida isso influenciou o setor vitivinícola e nomeadamente a região do Alentejo? Sem dúvida que, nos últimos três anos, o mundo tem vindo a enfrentar grandes mudanças e o setor vitivinícola, como tantos outros, tem vindo a deparar-se com diferentes desafios. Desde logo, poderemos destacar a (agora) recuperação do mercado nacional, o aumento dos custos de produção, a crise logística e energética, a sustentabilidade (social, ambiental e económica) e a escassez de mão-de-obra. No caso do Alentejo em particular, sendo o mercado nacional o principal destino das vendas, a sua recuperação é fundamental, em particular para os produtores de menor dimensão, que foram os mais atingidos. Entre março de 2020 e março de 2021 a pandemia teve como consequência para o Alentejo uma diminuição significativa nas vendas em Portugal, essencialmente devido à gigantesca quebra na restauração. Estamos gradualmente a recuperar dessa quebra, com aumento de 9% em volume e 38% em valor no período de janeiro a junho, mas a sentir que a inflação está a pressionar os consumidores a reduzir nas compras de vinho e a optar por preços mais baixos. Aguardamos com expectativa os resultados do 3.º trimestre, habitualmente beneficiados pela atividade turística. Claro que as exportações dão um alento muito positivo ao setor e recordamos que, no primeiro semestre deste ano, as exportações de Vinhos do Alentejo registaram uma subida de 12,4% em valor e de 9,7%, em volume, o que corresponde a 37,1 milhões euros e 10,4 milhões de litros de vinho vendidos para o estrangeiro, face a igual período de 2021..Que outros desafios identifica? As crises logística e energética são outro dos grandes desafios que enfrentamos hoje, com o atraso nos transportes de mercadorias, com o aumento do preço do transporte marítimo e com o custo de energia galopante que todos os setores têm sentido. Sem dúvida que estas duas crises afetam a economia nacional e mundial, o poder de compra e, naturalmente, o sucesso de muitos negócios. A subida dos preços da energia e de consumíveis como o papel e o vidro está a pressionar os fatores de produção, levando à redução das margens para as empresas, o que poderá implicar um aumento de preços. Não nos esqueçamos também da sustentabilidade nas vertentes social, ambiental e económica. Neste aspeto, o Alentejo é pioneiro com a implementação, já em 2015, do Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo (PSVA) e, em 2020, com a criação de uma especificação técnica para a certificação de produção sustentável. O PSVA funciona como código de boas práticas ajustado à realidade do Alentejo e a certificação - atribuída por organismos certificadores, que não a CVRA - é a "face" mais comercial e que, mediante auditoria, evidencia aos mercados o cumprimento dos critérios (mais de 170) estabelecidos para se reconhecer que a empresa tem uma produção sustentável..E há falta de mão de obra? Esse é também um dos principais problemas do setor, mais visível na época das vindimas. O interior do país tem menos população e o Alentejo, sendo uma grande área territorial, cerca de 1/3 do país, não tem mais de 700 mil habitantes, ou seja, 7% da população nacional. Faz todo o sentido que as políticas públicas olhem para estas discrepâncias e criem medidas que discriminem positivamente quem trabalha em regiões com demografias deprimidas..Quanto é que representa a região na produção e exportação de vinhos portugueses? O valor tem sido consistente ao longo dos tempos ou houve uma evolução (positiva ou negativa)? Porquê? Ao nível da produção de vinhos tranquilos (que não incluem licorosos e espumantes) o Alentejo representou 20% da quantidade produzida em Portugal nos últimos oito anos (2014-2021). Uma quantidade importante num país com 14 regiões vitivinícolas, tendo este peso percentual variações entre o máximo de 23% no ano de 2014 e os 17% de 2018, resultado das condições climáticas de cada ano. Na exportação de vinhos tranquilos engarrafados, a região representou na quantidade do mesmo período 14% dos vinhos tintos e 7% dos vinhos brancos, o que resulta em 12% do volume de vinho engarrafado exportado por Portugal..Destaquedestaque"Com a pandemia não baixámos os braços e os produtores alentejanos, durante os sucessivos confinamentos, reinventaram a forma de contactar com os seus públicos." .Quais as consequências da seca extrema que o país tem enfrentado? Quais as possíveis soluções? A seca, em Portugal e em particular no Alentejo, é um problema que já conta anos de história. Naturalmente que, pelas alterações climáticas, tem tido outra expressão e este ano, por exemplo, estamos a prever uma redução efetiva na colheita. Foi um ano muito seco com níveis de pluviosidade que foram metade dos registados em 2021, sendo mais penalizante para as vinhas com acesso limitado ou sem acesso a água para rega. Importa, antes de mais, reconhecermos que, em Portugal, cerca de 75% da água potável é usada pela agricultura, pelo que urge melhorar as formas de captar e reter a água da chuva e fazer um uso racional da mesma sem pôr em causa a atividade agrícola, os investimentos realizados e a produção de alimentos..O que é que já se faz na região? No Alentejo, por exemplo, com o PSVA promovemos práticas que não só poupam e armazenam água como também tornam os sistemas vitícolas mais resilientes a um clima mais seco e quente. Já dispomos de instrumentos de controlo e monitorização dos gastos de água, como o caudalímetro, software de rega de precisão apoiados por drone ou dados de satélite. Há, também, produtores que recolhem as águas da chuva para reutilizar na lavagem da adega, e outros tantos que lutam diariamente para garantir o célebre rácio de um litro de água consumida por cada litro de vinho produzido. Há toda uma panóplia de exemplos de atuações que são já postas em prática na nossa região e que poderiam, também, ser aplicadas a nível nacional..O Alentejo é a única região vitivinícola com uma certificação de sustentabilidade. Quantos produtores têm, hoje, esse certificado ou estão em vias de o obter? Esse número tem vindo a aumentar? Inicialmente é importante clarificar que, antes da certificação, existe todo um processo de aprendizagem e adaptação de novas práticas que, ao longo destes sete anos, tem tido uma evolução muito positiva: o Programa de Sustentabilidade de Vinhos do Alentejo (PSVA). Contamos com cada vez mais produtores interessados em fazer parte da iniciativa, seja ao nível da participação em ações de formação e workshops que dinamizamos com frequência, fazendo-se membros e dando os primeiros passos no sentido de uma produção mais sustentável, seja num nível superior, de procura da certificação e de promoção de práticas mais ambiciosas e com impacto mais elevado. Atualmente, o PSVA conta já com 517 membros, que representam 52% da área de vinha do Alentejo, e com 11 produtores certificados, número que pretende duplicar até ao final do ano..Qual a importância do certificado, nomeadamente para as exportações? Como mencionado, o PSVA não se encerra na certificação, sendo, antes, uma alteração sustentada e continuada do mindset de pequenos e grandes produtores de vinho, com vista à implementação de práticas mais sustentáveis na produção de vinho de toda a região. Este selo é uma cereja no topo do bolo, um prémio que os produtores que mais se empenharam em nome de uma produção sustentável recebem, de modo a poderem exibir uma garantia independente e de confiança aos consumidores deste trabalho realizado. Esta certificação está a ser cada vez mais valorizada em mercados como os Estados Unidos, Canadá́, Suécia, Noruega e Finlândia, destinos onde os consumidores estão mais atentos e despertos para o modo como os vinhos são produzidos e para a importância da promoção da sustentabilidade desta mesma produção..Os eventos físicos regressaram. Qual a importância dos mesmos nas vendas no mercado nacional? Os eventos presenciais são essenciais no setor do vinho, porque quem vende vinho vende sensações, e permitem aproximar os produtores diretamente dos consumidores, funcionando como uma reativação da nossa marca no panorama nacional, onde lideramos em termos de quota de mercado. A título de exemplo, vamos este ano estrear-nos no Porto, onde o consumidor - em conjunto com a restante zona norte, como Braga e Viana do Castelo - representa 25% das vendas do Alentejo no mercado nacional. O vinho é, sem dúvida, um produto sensorial e eventos como o que realizámos no WOW, no Porto, e, nos dias 18 e 19 de novembro, no CCB, em Lisboa, são fundamentais para demonstrar a singularidade dos nossos vinhos e a nossa história. O Alentejo é uma região cheia de estórias, da sustentabilidade passando pelas castas e métodos de produção ímpares, como o vinho de Talha..A pandemia, com o confinamento e consequente cancelamento de feiras internacionais, condicionou a exportações dos vinhos nacionais e especificamente dos alentejanos? Naturalmente que, como todos os setores, sentimos o impacto da pandemia e do adiar dos eventos presenciais. Mas, como não poderia deixar de ser, estamos de olhos postos no futuro e a verdade é que não baixámos os braços e os produtores alentejanos, durante os sucessivos confinamentos, reinventaram a forma de contactar com os seus públicos. Apostaram em eventos online, criaram novos pontos de venda e mantiveram - quando possível - as visitas de jornalistas internacionais à nossa terra, o que permitiu continuar a manter viva a nossa marca, o Alentejo. Em 2020 a exportação de vinhos do Alentejo esteve ao nível de 2019, mas em 2021 a região cresceu 12% em volume e 18% em valor e já em 2022 os resultados conhecidos até junho indicam aumento na exportação de 10% em volume e 12% em valor. Estamos confiantes que 2022 pode ser um excelente ano para a exportação de vinhos da região. A prova de que esta estratégia funcionou está na valorização internacional e crescente do preço médio do vinho alentejano.Como avalia 2022 e quais as previsões para 2023? A área de vinha considerada em produção deverá situar-se nos 23 100 hectares, cerca de menos 400 hectares face a 2021, em resultado de ações de controlo, o que também deverá ter impacto na produção da região. A atividade dos operadores demonstra crescimento no número de amostras de vinho entradas na CVRA (+12%) e pelos pedidos administrativos processados (+5%), bem como pela quantidade de vinho com certificação atribuída (+10%), onde destacamos o aumento de 23% no vinho branco, de 22% no rosé e de 7% no vinho tinto. No mercado nacional assistimos até junho ao crescimento das vendas, de 9% em volume e 38% em valor, com uma recuperação importante da restauração. Na exportação, os resultados positivos, também até junho, de +10% em volume e +12% em valor, deixam-nos convictos do enorme trabalho que os produtores estão a fazer. Na sustentabilidade, através do PSVA, vemos um incremento da área de vinha abrangida pelo programa (52% do total face aos 47% no final de 2021) e também nos 5 produtores que em 2022 obtiveram a certificação de produção sustentável (face aos 6 no final de 2021). Quanto à produção, a vindima no Alentejo teve início na última semana de julho, com a colheita de uvas brancas e de algumas castas que servirão para vinho base de espumante. Como habitualmente, as áreas mais a sul e mais quentes foram as primeiras a iniciar a vindima, que progressivamente avançou para norte da região alentejana. Sabemos, como já referimos, que foi um ano muito seco e que penalizou as vinhas com acesso limitado ou sem acesso a água para rega. Nesta fase consideramos como certa a diminuição da quantidade de uvas vindimadas no Alentejo, não estando ainda apurados números que possibilitem quantificar a diminuição face ao ano anterior. Ainda é cedo para traçarmos uma avaliação fidedigna do ano de 2022, mas se fosse um balanço final consideraria ter sido um ano com resultados positivos em que se evidenciou a dinâmica dos produtores da região, o profissionalismo e eficiência da CVRA, alguma recuperação no mercado nacional e excelentes resultados na exportação. Quanto a 2023, o contexto económico, energético e geopolítico apresenta-se com um nível de incerteza que não facilita previsões, mas estou convicto que será um ano de desafios que teremos de enfrentar, desde as famílias, às indústrias..Que trunfos tem o Alentejo a seu favor? O Alentejo é resiliente, tem uma viticultura desenvolvida, um conjunto de operadores dinâmicos, enoturismos profissionais, produtos ímpares como o vinho de Talha, um programa de sustentabilidade que ombreia com o que de melhor se faz a nível mundial e, no geral, vinho de qualidade que, passo a passo, está a ganhar posição nos mercados internacionais. Em união, os produtores e a CVRA terão de utilizar todas estas ferramentas para fazer face ao que o futuro nos reservar..dnot@dn.pt