Nem só de bares vive o vírus. O hospital das bonecas também tem de fechar

Pequenos empresários de Lisboa confiavam em março, na chegada da primavera e dos turistas para recuperar, finalmente. Não vai acontecer.
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"Como com coisas sérias não se brinca, só voltamos dia 27", lê-se num papel colado na porta de uma das lojas mais antigas de Lisboa, o Hospital de Bonecas, fundado em 1830. Estamos no coração da cidade, na Praça da Figueira. Os avisos proliferam nas portas e muitos negócios, sem anunciar, já estão fechados por precaução.

É domingo, está sol, mas a sombra do que virá nas próximas semanas, meses, tapa todo esse brilho. Os cafés e restaurantes são, de todos os negócios de comércio local, os que mais rapidamente capitularam com a propagação do coronavírus e a declaração do estado de alerta por parte do governo, que limita a circulação e a concentração de pessoas nestes espaços públicos.

A nova situação provocou uma forte quebra da procura. Há muito menos turistas e poucos clientes habituais, apenas os mais resistentes. Estes não chegam para mitigar o embate brutal em curso, lamentam alguns dos empresários ouvidos pelo Dinheiro Vivo (DV).

Com esta disrupção e dificuldades crescentes de fornecimento e de gestão de stocks, os estabelecimentos defrontam-se com problemas sérios de tesouraria; alguns assumem que já não vão conseguir pagar salários. Por isso, mais vale fechar. Por questões de segurança sanitária também, claro.

Os empresários no terreno explicam que os meses de janeiro e de fevereiro foram duros por causa das obrigações fiscais, de certificação, de um rol de regras a observar. Mas confessam que estavam confiantes neste mês de março, na chegada da primavera e dos turistas para recuperar, finalmente. Não vai acontecer.

No sábado, fontes do setor da restauração disseram à Lusa que mais de 200 restaurantes encerraram temporariamente em todo o País, mas o número vai aumentar de certeza. Em Lisboa, seguramente. Alguns dos estabelecimentos de restauração e cafés no centro avisam na porta, em folhas A4 de improviso, escritas no Word ou à mão: vão fechar. Uns adivinham a data possível para o fim das hostilidades ou assumem que é por "tempo indeterminado". E outros, sem avisos, simplesmente fecharam portas e portadas neste domingo. Normalmente, estariam abertos, mas agora nem vivalma lá dentro. Mas não são apenas cafés e restaurantes.

O vírus da paralisia económica está a afetar outros comércios locais. No centro de Lisboa podem contar-se inúmeras lojas de roupa, sapatarias, sapateiros, garrafeiras, lojas de artesanato, de conservas, de cerâmica portuguesa, farmácias que vendem produtos não sujeitos a receita médica que já não abriram, nem vão abrir na segunda-feira. É até ver. "Vamos avaliar o curso da situação", diz a senhora da farmácia enquanto tranca as grades. Está um dia lindo de sol, de facto.

Algumas lojas, como o mais que centenário Hospital de Bonecas, espera reabrir os seus serviços de restauro a 27 deste mês, como referido, mas por exemplo a Fábrica das Enguias, uma loja (não é uma fábrica) que surgiu com o boom do turismo, especializada em "conservas de enguias", em plena Rua da Prata, anuncia em inglês e português que "encerra por tempo indeterminado". "Estaremos de volta assim que a normalidade estiver reposta", acrescenta a gerência.

Na praça Martim Moniz, há diferentes correntes de pensamento sobre o problema. Estamos na chamada Chinatown lisboeta. A casa Big Brindes, que vende de tudo e mais alguma coisa para a casa (decoração, brindes, brinquedos, loiças), argumenta: "uma vez que está a aumentar o número de casos positivos de Covid-19 em Portugal, e que o nosso trabalho exige contacto diário com um grande número de pessoas, para minimizar o risco de segurança de todos nós, vamos encerrar a loja por este período crítico, de 16/3/2020 a 19/4/2020". Mesmo ao lado, a concorrente Best Biju, até parece que adivinhou: "vamos estar encerrados para férias até ao dia 16 de março". Diz que abre esta segunda-feira, primeiro dia de fecho forçado das escolas em todo o país, em pleno nível de alerta e a caminho para o "estado de emergência" previsto na Constituição da República.

A farmácia da Rua da Palma (logo a primeira, como quem sobe, à direita) pede contenção. O técnico usa máscara e exige que não estejam mais de 2 ou 3 pessoas ao mesmo tempo dentro do espaço. Está a resultar. Tudo tranquilo até agora. Saiu um cliente e a farmácia ficou vazia.

No coração da Mouraria Na Rua da Mouraria, antigamente, havia um supermercado Alisuper. Hoje é uma loja grande, propriedade de empresários chineses, que vende perfumes, produtos de beleza, vernizes para unhas, maquilhagem, lingerie, meias de senhora, mantinhas e cobertores em polartec e muito mais. Aqui pede-se aos clientes que usem "máscaras", como aliás os empregados exemplarmente fazem. Este fim-de-semana decidiram dar um tempo, sem nunca mencionar a pandemia. "Estamos fechados para remodelação e reabrimos em breve". Escreveram o aviso também em chinês.

Há poucos parques infantis no centro histórico de Lisboa. Na Rua do Capelão, núcleo duro da Mouraria, há um exemplar agradável, da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Está "encerrado temporariamente", trancado atrás das grades e sem data de reabertura. Motivo: o vírus. De volta aos cafés e restaurantes, há a Padaria Portuguesa, que reduziu o horário como os supermercados. E um dos kebabs mais antigos de Lisboa, o Istanbul Kebab, um balcão exíguo, sempre impecável, na Rua João das Regras (como quem vai para a Praça da Figueira). O Istanbul fechou, sem aviso. Num domingo normal, estaria cheio de trabalho, de cheiro a fritos e pessoas à conversa. Meio minuto a pé, o restaurante Caxemira, também ele um pioneiro lisboeta da cozinha indiana e goesa. Dizem que vão fechar por causa do "surto". Outro sem data de reabertura. Nem só de comida vive a gente.

A Garrafeira Nacional, que tem quatro lojas em Lisboa, vende vinho e bebidas destiladas; decidiu reduzir horários de atendimento. De volta à Baixa O pronto-a-vestir VIP, na Rua da Prata, só reabrirá a 23 de março. A pandemia levou a Planalto Wellness, que ocupou o lugar da antiga farmácia Simões Pires, também na Rua da Prata (esquina com a Rua de São Nicolau), a fechar sem R de reabertura. Fechada "até, pelo menos, 9 de abril", depende do "novo ponto da situação" que o governo fizer até lá, lê-se num papel colado no vidro da montra com fita-cola, prestes a ser levado pelo vento que corre com força na Baixa, do norte em direção ao Tejo.

Na Rua dos Fanqueiros há bastantes negócios novos. Por causa do turismo e não só, nos últimos anos abriram lojas de artesanato e peças de design estilo português, um supermercado de "proximidade" da Sonae, dois salões de massagens tailandesas, um elevador da EMEL (Câmara de Lisboa). E imensos alojamentos locais e hotéis, claro. A Soma Ideas Art Craft Design tem ali uma loja bem parecida, faz lembrar boa fancaria e, ironicamente, fica nos Fanqueiros. Estava à procura de "colaboradoras fluentes em inglês e francês" até isto acontecer. Agora vai "seguir as diretrizes emanadas pela Direção-Geral de Saúde e de forma a ajudar a prevenir a propagação do vírus". Encerrada "a partir de 15 de março por tempo indeterminado".

As massagistas tailandesas continuam abertas, mas passa tão pouca gente... As empregadas dizem "olá" a ver se cativam, se alguém entra. Está fraco.

O tal supermercado da Sonae também reduziu o horário como os outros da Jerónimo Martins. O pronto-a-vestir Abilini, originalmente um especialista em "malhas para senhoras", é outro pioneiro da Baixa (estabelecido em 1951), mas decidiu encerrar até final de março. Os sapateiros e artesãos da Silpes e da Casa Forra, no Poço do Borratém, idem.

Mais radical foi a EMEL que encerrou os elevadores da Rua dos Fanqueiros até à Costa do Castelo "para proteção dos utilizadores e utilizadoras" e "por tempo indeterminado". Já a Leitaria Moderna, à beira da Igreja de São Cristóvão, foi mais subtil. A casa continua aberta, mas agora sem as cadeiras para "limitar o tempo de exposição".

No coração de Lisboa há, por fim, os comércios que resistem indiferentes ao estado de sobreaviso. As tendinhas que vendem ímanes de frigorífico, lembranças coloridas made in China, imitações de caravelas e torres de Belém tão brilhantes que até parecem de plástico, essas continuam abertas.

Na cidade que se fecha, ainda é perfeitamente possível comprar carteiras e sapatos de cortiça e no fim pagar com cartão visa.

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