Ana Jacinto: "Primeira coisa que iremos pedir ao novo governo é que reverta leis do Alojamento Local"

A secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal critica o pacote Mais Habitação e garante que diálogo com o futuro Executivo irá começar por este tema. Inflação, juros e carga fiscal são os desafios que aponta às empresas do setor para 2024.
Publicado a
Atualizado a

Esperam-se restaurantes cheios no Natal e na passagem de ano?
Esperemos que sim. Os dados que temos ainda são prematuros, há muitas reservas de last minute, as pessoas decidem cada vez mais à última da hora. Mas tudo indica que correrá bem e esperemos que superem o ano passado. No caso do alojamento, as reservas estão a ser feitas com alguma persistência, tudo indicará que teremos umas boas festas.

Apesar de ser tradicionalmente uma época de família e de casa, as pessoas estão a optar mais por celebrar em restaurantes?
Notam-se algumas mudanças de hábitos também nesse aspeto. Sobretudo na hotelaria, estamos a ter muita procura para estes jantares de família, porque as pessoas já não têm tanto tempo e tanta disponibilidade para estarem a fazer estas festas em casa, nota-se algum interesse. Mas há muitas assimetrias no país, porque temos estabelecimentos de restauração muito mais virados para o mercado interno e sabemos que o poder de compra está a diminuir. Temos de ter alguma prudência, porque as famílias também não têm tanto poder de compra. Os restaurantes que estão mais virados para o turismo internacional continuam a ter uma boa procura e continuamos em sentido positivo sempre a crescer. O nosso país está na moda e espero que assim continue.

Esta quadra é um balão de oxigénio que precede os meses mais baixos que se avizinham?
Sim. É importante, sobretudo, porque não nos podemos esquecer de que as empresas vêm de uma pandemia e não tiveram tempo, pelo menos as mais débeis, de fortalecer as suas tesourarias e ter capacidade para ser rentáveis. Temos procura e isso é indiscutível, mas o facto de termos os estabelecimentos cheios não significa que essas empresas estejam a ser rentáveis no final do dia. Viemos da pandemia, as empresas estão a pagar os empréstimos que contraíram durante a covid, enfrentam a inflação, sobretudo a alimentar. A inflação está a desacelerar, sim, mas a inflação alimentar, embora também esteja a diminuir, é muito mais alta do que a inflação geral. Acrescem as taxas de juro, o incremento salarial que tivemos que dar aos nossos colaboradores e tudo tem um impacto grande nas empresas que por isso trabalham muitas vezes para pagar custos, porque não podem aumentar o mesmo nível de inflação ao consumidor. No caso do alojamento tivemos um ajuste de preço mais fácil, porque a maioria do alojamento tem também um mercado internacional mais fácil de poder suportar estes ajustes.

Já se nota a quebra do poder de compra do mercado interno?
Eu não diria quebra, porque nós temos procura e os estabelecimentos têm gente. Às vezes é até difícil fazer uma reserva num restaurante, as pessoas não estão a deixar de ir. Temos muitos estabelecimentos com procura embora isso não signifique rentabilidade. Como tudo subiu, os custos operacionais da empresas subiram drasticamente e não conseguimos repercutir esses aumentos nos nossos preços, a rentabilidade final é praticamente nula.

Mas os hábitos também mudaram? As pessoas estão a partilhar mais pratos e a consumir menos?
Sim, consomem menos, têm mais preocupação com o que escolhem e pedem pratos mais em conta.

Como é que se poderia ajudar a rentabilizar as empresas? Através da redução do IVA?
Sim. Há um conjunto de medidas que a AHRESP tem vindo a defender já há muito tempo. Tivemos um pequeníssimo ganho que foi a questão da reposição do IVA em algumas bebidas. Há duas propostas diferentes. A baixa do IVA para a taxa reduzida durante um determinado período que nós propomos que seja de um ano, e isto não é por acaso. Esta medida foi concretizada em vários países europeus durante a pandemia para permitir às empresas ter tesouraria. Continuamos a insistir nesta medida, porque deu frutos nos países que a implementaram e temos de aprender com as boas práticas. O Governo, mais uma vez, não optou e não veio neste Orçamento do Estado (OE). Outra medida que defendemos refere-se ao que foi prometido pelo Governo já há alguns anos, que quando repôs a taxa dos serviços de alimentação e bebidas à taxa do IVA de 13% não o fez em todos os produtos. As bebidas ficaram à taxa máxima e defendemos que tudo seja uniformizado e todas estejam na taxa intermédia. Não fazia sentido que uma água lisa fosse taxa a 13% de IVA e a água das pedras a 23%. Neste OE, os 13% foram alargados a outras bebidas, mas não todas, continuamos com bebidas a 23%, designadamente os refrigerantes, as bebidas alcoólicas. É verdade que provavelmente o Governo entendeu que estamos aqui a falar de produtos alcoólicos e com açúcar, mas a verdade é que não faz sentido termos estas discrepância, isto só gera confusão. Mas há outras medidas que defendemos e que não passam só pelo IVA, como o peso da carga fiscal no rendimento do trabalho. Fizemos um esforço enorme e estamos a fazer reuniões com sindicatos para fazermos atualizações salariais e negociarmos os contratos coletivos. Este esforço que a AHRESP tem vindo fazer não fica só pelo acordo com os parceiros sociais. No ano passado, já fizemos uma atualização aos contratos coletivos superior ao valor que tinha sido acordado em sede de negociação com os parceiros sociais, porque atualizamos os salários em cerca de 8%, como mínimos. Mas isto tem um impacto grande, porque tem um peso ao nível da carga fiscal enorme e é aqui que consideramos, e temos vindo a defender, que o Estado tem de fazer o seu papel e diminuir a carga que permitiria às empregas pagar melhor.

Foi mais um ano de recordes para o turismo, em receitas e proveitos. O balanço é positivo?
É um orgulho olhar para os dados que estamos a ter no turismo, foi um ano de superação face ao ano passado e a 2019. Só queremos que continue assim e tudo indica que vamos continuar a crescer e a ter esta procura. Mas é um duplo sentimento porque também sentimos preocupação e prudência, porque isto não significa que as empresas sejam todas rentáveis e estejam de saúde financeira boa. Temos de estar atentos e prudentes porque é um setor muito micro, com empresas muito frágeis que não tiveram as condições suficientes para sair da crise que passámos recentemente.

Os turistas estrangeiros são o suporte dos bons números?
O turismo internacional é vital e não é só nos centros urbanos, temos cada vez mais procura pelo interior. Foi uma das grandes marcas deste Governo, dar mais território aos turistas e isso é absolutamente fundamental para que haja maior coesão no país e maior uniformidade de condições. Espanto-me muito quando oiço vozes a dizer que temos turistas a mais. Não sei o que é turismo a mais e não temos turistas a mais, precisamos é de muitos mais turistas. Teremos é de gerir fluxos, os turistas não precisam de estar todos no mesmo dia, à mesma hora a ver as mesmas coisas. Isso já nos compete a nós, termos inteligência, temos a tecnologia a nosso favor e pode ser uma aliada na gestão dos fluxos.

Olha para 2024 com otimismo ou há alguma apreensão?
Acredito que vamos continuar a estar na moda e vai continuar a haver procura pelo nosso destino. Mas também temos grandes preocupações com os conflitos que ainda duram. Preocupam-me as taxas de juro que continuam elevadas, a inflação e a revisão em baixa do crescimento económico feita pelo Banco de Portugal. Tudo isto são alertas. Temos de ter atenção e ajudar as empresas a não enfraquecer e continuar a ser robustas. Não nos podemos esquecer que as empresas são constituídas para gerar riqueza, não é só para pagar impostos. Se as empresas deixam de criar riqueza não vale a pena criarmos empresas e somos todos assalariados e ninguém é empreendedor. Temos de permitir que as empresas tenham um ambiente favorável à criação de riqueza. Parece que há receio em dizer isso, mas é esta a verdade.

Há receio de uma maior retração no consumo?
Há receio, até porque não ajuda estarmos com um governo de gestão. Depois, temos eleições antecipadas, temos de esperar e são impasses que impactam na vida das empresas e das pessoas, além da inflação e as taxas de juro. O início do ano é muito mau, as pessoas gastaram o que tinham na época de Natal e de passagem de ano e depois são sempre meses muito difíceis. Temos cenários que podem ser complicados.

A mão-de-obra no setor continua no topo das preocupações. Quantos trabalhadores faltam?
A última vez que fizemos um levantamento tínhamos uma falta de cerca de 40 mil postos de trabalho, mas isto foi antes da pandemia. As empresas têm muita dificuldade em contratar, especialmente trabalhadores qualificados. Temos inclusivamente estabelecimentos que não estão a funcionar todos os dias porque não têm pessoas para trabalhar. Só abrem ou ao almoço ou ao jantar e esse continua a ser um problema muito grande. É evidente que não é só do setor do turismo, o país está envelhecido, a própria pandemia alterou muito o perfil do trabalhador. As pessoas perceberam que há outros interesses que não só o trabalho e têm mais dificuldade em estar disponíveis para o mercado de trabalho. Não vamos conseguir resolver o problema só com as pessoas que temos no país, também tem de ser resolvido com imigrantes e é por isso que o Governo fez alterações legislativas nesta matéria, que foram positivas, mas não suficientes para se notar um impacto nas empresas. A legislação nacional foi aligeirada e simplificada, mas depois estávamos a ter problemas nos países de origem dos colaboradores, porque começaram a dificultar a passagem dos vistos de lá para cá e o problema manteve-se. Neste momento, temos algumas alterações positivas porque a ministra do Trabalho constituiu equipas de adidos em alguns países para facilitar a emissão dos vistos, com o propósito de impedir que haja as tais máfias que controlam a emissão dos vistos e serem eles a facilitar. Tudo isto são boas medidas, mas depois temos vários problemas, porque os imigrantes não podem vir para aqui sem serem devidamente acolhidos e em condições dignas, e não temos onde os alojar nem temos uma rede adequada para eles trazerem as famílias.

As escolas de turismo do país continuam cheias. O setor não consegue atrair os jovens e contar com eles como parte da solução?
Este é um problema que não se resolve só numa vertente, com os trabalhadores imigrantes, e não se resolve só com os nossos trabalhadores. Existe uma falta de valorização das profissões do setor, que não são suficientemente atrativas para chamar pessoas e a pandemia desviou muitas delas para outras atividades que permitem ter um sábado e um domingo e que não implicam trabalhar à noite. Se perguntarmos aos pais o que é que querem que os filhos sejam, raramente dirão que querem que sejam empregados de mesa. E isto tem de mudar, porque o empregado de mesa é uma profissão tão digna como outra qualquer, é uma função em que o profissional acolhe a pessoa no espaço, conversa. A profissão não está valorizada pelas designações que temos. Só o nome não é apelativo, temos um problema de designação, que não resolve tudo, mas é uma parte do processo. Depois temos de valorizar a profissão, não é só a remuneração porque, se não pagarmos bem às pessoas, não temos pessoas para trabalhar. E nesta atividade não pagamos só o salário base, os fins de semana têm um acréscimo salarial, o horário noturno também. Se o profissional souber línguas, obrigatoriamente também temos de pagar um prémio por cada língua que ele fale.

Em muitos estabelecimentos familiares isto não existe, não se pagam extras pelas línguas faladas, por exemplo.
Mas tem de existir.

E os contratos informais? Muitos profissionais do setor trabalham sem contratos e recebem "por fora".
É completamente residual, porque hoje em dia toda a máquina como está montada é muito difícil isso acontecer. Já foi um problema, mas hoje, não digo que não aconteça, é residual. Todos os trabalhadores deste setor são abrangidos pelos contratos coletivos que a AHRESP negoceia. Estas condições estão lá e são obrigatórias. A questão da remuneração é importante, mas não é o topo das preocupações que têm a ver com o facto de a profissão ser muito dura. Os jovens não estão disponíveis para prescindirem daquilo que gostam mais, querem estar com amigos, ir ao ginásio e precisam que as nossas empresas tenham atenção a estas questões e isto é que é difícil, porque somos um setor que trabalha 24 horas por dia, sábados e domingos e isto é duro.

O que espera do próximo Governo?
Espero que possa concretizar as medidas que a AHRESP tem vindo a defender, já referi algumas. Outra que é crucial e que espero que o Governo possa reverter tem a ver com o Alojamento Local (AL). O pacote Mais Habitação criou alterações dramáticas para este setor de atividade, completamente injustificáveis do nosso ponto de vista e que precisam de ser rapidamente revertidas. Não escondemos a cabeça dentro da areia, se há alguma coisa para mudar e ajustar, a AHRESP está cá para fazer parte da solução, mas não admitimos o que aconteceu que é tomar decisões sem conhecer. Não se avaliou, não se foi ao terreno conhecer o que se estava a passar. O peso da carga contributiva leva a que estes alojamentos não sejam rentáveis e se não o são acabam. Confundiu-se a falta de habitação com o AL. Não nos podemos esquecer que 60% dos imóveis que estão hoje no AL estavam em prédios completamente desabitados, a cair. Ninguém tirou de lá arrendamento ou pessoas que estavam a morar para o AL. Há situações em que isso aconteceu, mas 60% eram prédios a cair e foi à conta do AL que as cidades foram regeneradas e isso trouxe a regeneração do comércio, a vida às cidades. Incentivámos estes empresários, muitos abandonaram as suas vidas para apostar no AL e incentivámos também para colocar tudo na formalidade. Antigamente, toda a gente tinha quartos e quartinhos. Conseguiu-se esse objetivo e, de repente, vem alguém dizer que não há casas em Lisboa e no Porto por culpa do AL. Os meus pais, que não são de Lisboa, quando casaram e quiseram vir para a cidade, não conseguiram arranjar casa, e isto foi há 50 anos. Eu quando me casei também não consegui vir viver para Lisboa e fui viver para a Amadora porque era mais barato. Porque é que de repente toda a gente tem de poder viver em Lisboa? De onde é que apareceu esta necessidade? Temos de ter casas para arrendar? Claro que sim, mas isto não tem a ver com o AL que foi diabolizado. Estamos a condenar um setor que é absolutamente crucial para o turismo. Esta gente que não conseguiu fazer os registos não vai deixar de dispor dos apartamentos, vai para a informalidade. Será uma das primeiras coisas que iremos fazer com o novo Governo, pedir que reverta as medidas do AL.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt