Dinheiro
01 dezembro 2022 às 00h14

À porta da crise. Grandes tecnológicas despedem mais de 30 mil a antecipar 2023 difícil

O boom da big tech impulsionado pela pandemia de covid-19 chegou ao fim e está em forte correção. Amazon, Meta e Twitter fizeram os despedimentos em massa mais visíveis, mas não são as únicas a reduzir. Porquê?

Ana Rita Guerra, em Los Angeles

Levantada desde as três da manhã para cuidar da sua bebé de três meses, Anneka Patel recebeu a notificação de que tinha sido despedida às 05h35 do dia 09 de novembro. "O meu coração afundou-se", escreveu a gestora de comunicação no LinkedIn. "Isto atinge-me com força, visto que estou em licença de maternidade."Patel, que sonhava em trabalhar no Facebook desde que se mudou para São Francisco, há nove anos, foi uma das 11 mil pessoas demitidas na maior onda de despedimentos em massa da história da empresa.

O CEO Mark Zuckerberg deu a cara pela decisão difícil e a notícia reverberou nos meios de comunicação, apesar do momento escolhido pelo executivo para o anúncio: o dia seguinte às eleições intercalares nos Estados Unidos, com todos os olhos virados para os resultados que determinariam o controlo do congresso e das legislaturas estaduais.

A saída de 13% da força de trabalho da Meta - casa-mãe do Facebook, Instagram e WhatsApp - aconteceu apenas uma semana depois de Elon Musk ter eliminado cerca de 50% dos funcionários do Twitter, despedindo 3700 pessoas assim que assumiu o controlo da rede social. Tem havido relatos de mais funcionários a saírem quase diariamente, sendo que a empresa passou de 7500 para 2700 empregados em menos de um mês.

E a tinta ainda não tinha secado nas cartas de demissão quando a Amazon anunciou a sua própria ronda de despedimentos: cerca de 10 mil em posições corporativas e de tecnologia, com o CEO Andy Jassy a admitir que os cortes vão continuar no próximo ano.

Quando três grandes empresas tomam medidas destas, o mercado presta atenção. Mas Meta, Twitter e Amazon não são as únicas big tech a reduzirem os seus quadros. A HP anunciou na semana passada que vai despedir entre quatro a seis mil funcionários nos próximos três anos. A Stripe mandou embora 1100 pessoas, a Shopify e a Microsoft mil cada, a Netflix cerca de 450, a Tesla 10% da força de trabalho assalariada. Depois de um certo "pingar" de saídas que foi ocorrendo ao longo de 2022, a comporta abriu-se e estamos em plena reversão do que aconteceu nos últimos anos. Não só terminou a expansão como a big tech está a arrepiar caminho.

Destaquedestaque"O que estas tecnológicas estão a fazer é alguns cortes para poderem prevenir quedas superiores a nível dos lucros"

"O setor das tecnológicas teve um boom nos últimos três anos que já não era visto há muito tempo", disse ao DN Francisco Jerónimo, vice-presidente associado da divisão de dispositivos na IDC EMEA. "Durante a pandemia, a eletrónica de consumo e outras áreas de software tiveram booms fenomenais." As pessoas compraram mais tecnologia para casa e as empresas investiram em dispositivos, software, aplicações cloud e serviços, numa altura em que foram forçadas a adotar novos modelos de trabalho.

Ao mesmo tempo, houve maior procura por compras online e por entretenimento em casa. "As pessoas passaram muito mais horas em frente ao computador, o que levou a que toda a área de publicidade online tivesse crescido bastante", disse o responsável da consultora, referindo que empresas como a Meta e a Google, que vivem essencialmente da publicidade, capitalizaram nessa tendência.

Estes fatores levaram a que houvesse uma expansão acelerada de contratações na big tech, com as grandes empresas a competirem pelo melhor talento. Acenaram com a possibilidade de trabalho remoto, salários generosos e benefícios laborais. Só a Meta mais que duplicou a sua dimensão, passando de 40 mil empregados no início de 2020 para 87 mil pessoas em setembro de 2022. Os quadros da Amazon incharam ainda mais: no pico da pandemia, a gigante do retalho online contratou quase meio milhão de pessoas para lidar com o aumento sem precedentes da procura.

"Houve todo este boom tecnológico, com crescimentos em áreas que já não se via há vinte e tal anos", frisou Francisco Jerónimo. "Neste momento, o mercado está a cair. Os crescimentos foram muito significativos e agora as quedas notam-se mais."

Não é só porque o confinamento acabou, a inflação reduziu o rendimento disponível e há um receio de recessão económica em 2023. É também porque uma grande parte do impulso no setor adveio da compra de dispositivos que não são substituídos regularmente. Quem comprou computadores, tablets, smartphones, óculos de realidade virtual, bicicletas estáticas inteligentes e outros gadgets dispendiosos não vai fazer uma renovação tão cedo. E isso, indicou Francisco Jerónimo, não apanhou ninguém de surpresa.

"Já era esperado que esses crescimentos não iriam durar toda a vida", referiu. Os números confirmam-no, com "quedas bastante acentuadas" na eletrónica de consumo e uma redução nos gastos das empresas.

No entanto, o que está a acontecer não é um simples ajuste após o pico da covid-19, até porque acontece num contexto em que a economia americana adicionou mais emprego em outubro que o previsto: 261 mil novos empregos, acima dos 195 mil que eram esperados.

"Haveria alguma correção pós-pandemia, mas não de forma tão alargada", frisou Francisco Jerónimo. "Empresas como a HP iriam sempre sofrer com a queda dos PC. Mas não quer dizer que essa queda justificasse despedimentos desta ordem."

O que atirou uma pedra para a engrenagem foi a invasão da Ucrânia por forças russas no final de fevereiro, com desfecho incerto e sem horizonte de resolução.

"A guerra veio alterar toda a dinâmica económica a nível mundial", apontou Francisco Jerónimo. "O choque energético tem impacto a nível da inflação e do aumento do custo de vida, os bancos centrais estão a reagir através do aumento das taxas de juro e estão aqui a ser criadas as condições "ideais" para que os mercados entrem em recessão."

Uma vez que a temporada de resultados do terceiro trimestre de 2022 foi dececionante no setor, os despedimentos sinalizam que as empresas não antecipam melhorias.

"O que estas tecnológicas estão a fazer é alguns cortes para poderem prevenir quedas superiores a nível dos lucros", disse o analista, referindo que a dimensão das saídas ainda é relativamente baixa. "Apesar de vermos milhares de despedimentos, é uma percentagem pequena da força de trabalho dessas empresas."

No entanto, a expectativa é de agravamento. "Acho que as correções vão ser maiores no próximo ano, porque se a guerra durar, as taxas de juro continuarem a subir e o custo de vida também, vai haver uma retração maior da procura e isso vai-se notar substancialmente neste tipo de empresas." A expectativa do responsável da IDC é que em 2023 sejam anunciados mais despedimentos mas também cortes dos investimentos. Vai acabar por ser "uma bola de neve."
E isso significa que os cortes serão generalizados? Possivelmente. Jerónimo referiu que, por enquanto, Portugal continua a beneficiar da procura de talento por parte de startups, o que não quer dizer que fique imune à tendência. "A grande força de trabalho está nos Estados Unidos, mas se o negócio não melhorar vão cortar noutras regiões."

A indústria da tecnologia "provavelmente vai sofrer mais que as outras", fruto da queda na procura depois de vender muito nos últimos dois anos, mas não estará só. "Se calhar não vamos ver anúncios públicos de empresas a despedirem 10 a 15 mil pessoas, também porque a grande maioria do segmento empresarial são pequenas e médias empresas. Mas vai haver reajustes."

MARK ZUCKERBERG/META

Quando anunciou o corte de 11 mil funcionários, o CEO da Meta assumiu a responsabilidade e admitiu que se enganou ao expandir a empresa de forma tão grande durante a pandemia. Zuckerberg achava que a explosão do e-commerce iria acelerar de forma permanente e isso não aconteceu. Há também a guerra com a Apple, que passou a restringir a informação a que a Meta tem acesso com o Facebook nos iPhones e isso repercute-se nas receitas de publicidade. Por outro lado, a aposta no metaverso não teve ainda resultados visíveis.

"Ainda não ouvi ninguém dizer que eles vão conseguir e é a estratégia certa para o futuro da Meta", disse Francisco Jerónimo. "O conceito pode ser interessante", afirmou, "mas é difícil perceber como é que alguém vai achar que é fundamental ter um mundo digital onde viva uma vida paralela ou tenha a sua vida principal." Só em 2022, a unidade Meta Reality Labs, que lidera o esforço de criação deste mundo virtual, já perdeu 9,4 mil milhões de dólares.

Esta sangria de dinheiro está a afetar a fortuna pessoal de Zuckerberg, ligada à performance da empresa em bolsa: caiu mais de 100 mil milhões de dólares em 2022.

JEFF BEZOS

O magnata que deixou o cargo de CEO da Amazon em julho do ano passado disse este mês que vai doar a maior parte da sua imensa fortuna a instituições de solidariedade, no combate à crise climática e a iniciativas de caridade social. A lista de milionários Forbes 400, publicada em setembro, dava conta de uma fortuna de 160 mil milhões de dólares, entretanto reduzida para 124 mil milhões em novembro, com os altos e baixos das ações da Amazon a terem impacto no seu portfólio.

Há até quem argumente que Bezos pode regressar ao comando da gigante, liderada por Andy Jassy desde o verão do ano passado, para recolocar a Amazon no caminho do crescimento. Seria algo similar ao que acaba de acontecer na Disney, em que o ex-CEO Bob Iger saiu da reforma para substituir Bob Chapek dois anos depois. Bezos não deu indicações nesse sentido, mas tem vindo a avisar para tempos sombrios no horizonte. "As probabilidades nesta economia dizem-nos para fechar as escotilhas", escreveu em outubro, na sua conta do Twitter.

ELON MUSK

O "bilionário mercurial", que é a pessoa mais rica do mundo, viu a sua fortuna pessoal cair mais de 100 mil milhões de dólares em 2022, numa altura em que a sua reputação está a ser chamuscada por comportamentos dúbios à frente do Twitter. Os despedimentos em massa na rede social, apontou Francisco Jerónimo, são de uma natureza diferente e estão relacionados com questões internas da nova liderança.

Musk foi forçado a completar a aquisição do Twitter por cerca de 44 mil milhões de dólares no final de outubro, depois de tentar cancelar o acordo de compra, e a sua gestão mergulhou a rede social no caos durante o último mês. Vários responsáveis técnicos despedidos foram contactados para regressar, o CEO pediu sacrifícios hardcore a quem quiser continuar a trabalhar na empresa, e há um litígio laboral porque Musk alegou justa causa no despedimento de executivos e não deu pré-aviso nos despedimentos em massa. Algumas funções do Twitter começaram a dar problema por esvaziamento de departamentos, como a autenticação de dois fatores.

Além dos problemas no Twitter, Musk está a ser alvo de processos na Tesla, da qual também é CEO.

dnot@dn.pt