Vuelta: Primoz Roglic ganha pela quarta vez e iguala recorde de vitórias
A Vuelta voltou a ser o porto seguro de Primoz Roglic, com o ciclista da BORA-hansgrohe a esquecer as mágoas da época com a quarta vitória na prova espanhola, a grande Volta que evidencia o melhor do esloveno.
Obcecado com a ideia de vencer a Volta a França, trocou esta época a sua equipa de sempre, a Visma-Lease a Bike, por outra na qual evidentemente não se sente tão confortável, mas viu o seu sonho novamente arruinado por uma queda, as grandes 'rivais' que enfrentou na sua carreira e que 'amoleceram' o seu caráter, sendo forçado a virar-se para o seu eterno 'refúgio', a prova que venceu entre 2019 e 2021 e na qual é agora recordista de triunfos, empatado com o espanhol Roberto Heras.
É preciso ver para crer quão genuíno e afável é o esloveno, conhecido por ser um verdadeiro 'canibal' na estrada e, muitas vezes, criticado por ser tão impiedoso -- no ano passado, perdeu fãs por desrespeitar a liderança de Sepp Kuss e por atacar o seu sempre fiel e dedicado escudeiro quando este seguia de vermelho, ao ponto da direção da então Jumbo-Visma ser obrigada a intervir, numa decisão que serviria de impulso para 'Rogla' decidir assinar por outra equipa.
Durante as etapas 'portuguesas' desta edição da prova espanhola, não negou um sorriso a ninguém, desacelerou para que lhe pudessem tirar fotografias, acenou a fãs até através dos vidros das carrinhas da BORA-hansgrohe, sendo um verdadeiro sucesso entre o público nacional, rendido à inesperada simpatia do agora quatro vezes campeão da Vuelta, que até chegou atrasado à apresentação das equipas, diante da Torre de Belém, em Lisboa, por se ter distraído com os fãs -- "Queria ter o palco só para mim", justificou-se então.
Dono de um humor suis generis, pouco percetível para a maioria, Roglic é um personagem: nesta Vuelta, tentou travar amizade com o T-Rex da Soudal Quick-Step, foi 'apanhado' a assobiar de braços cruzados enquanto aguardava para subir ao pódio, distribuiu bidons por um público absolutamente desinteressado da sua simpática oferta, respondeu com permanentes ironias aos jornalistas, junto dos quais não deixou de criticar as táticas da BORA, como na 19.ª etapa, quando assumiu que não queria ganhar mas a isso foi obrigado pelos seus companheiros que não o ouviram.
O também campeão do Giro2023, quase a completar 35 anos, chegou à 79.ª edição cauteloso e ainda com dores, depois da enésima queda que sofreu nos últimos quatro anos - são 17 em competição desde o Critério do Dauphiné de 2020 - lhe ter provocado uma fratura na região lombar e o ter levado a abandonar pela terceira vez consecutiva a Volta a França, a sua 'besta negra'.
A sua obsessão com o Tour, além da desfeita causada por não lhe terem permitido lutar pela vitória na Vuelta2023, levou-o mesmo a abandonar a sua equipa de sempre - da qual visivelmente sente saudades -, por estar tapado por Jonas Vingegaard, o dinamarquês que venceu as edições de 2022 e 2023 da prova francesa.
Mais do que mencionar aquilo que ganhou, falar de Roglic é falar das suas derrotas e azares, uma verdadeira injustiça para aquele que é um dos maiores voltistas do século XXI. No entanto, para o público, e para o próprio, é aquele Tour2020 que lhe escapou inexplicavelmente para o jovem compatriota Tadej Pogacar no penúltimo dia, num contrarrelógio em que a sua imagem com o capacete de lado se tornou icónica, a memória que prevalece, acima inclusive do Giro que ganhou precisamente do mesmo modo, destronando Geraint Thomas no 'crono' na véspera do final.
Lutador nato e ávido caçador de vitórias, 'Rogla' desde sempre se habituou a superar obstáculos: antes de tornar-se o primeiro esloveno a vencer uma etapa no Tour, no mesmo 2017 em que ganhou a Volta ao Algarve, foi uma promessa dos saltos de esqui, modalidade em que se sagrou campeão mundial júnior por equipas e venceu duas Taças Continentais.
Mas o seu percurso bem-sucedido foi abruptamente interrompido em 2007, quando um traumatismo craniano, resultante de uma aparatosa queda, o levou a afastar-se da competição, acelerando a mudança de horizontes, efetivada em 2012, quando abandonou de vez os esquis e vendeu uma mota para investir numa bicicleta.
Nascido e criado entre montanhas nos arredores de Trbovlje, Roglic, então com 22 anos, convertia um mero passatempo em ocupação a tempo inteiro, mas nem o início tardio no ciclismo de estrada, com as cores da Adria Mobil (2013-2015), o privou de uma carreira invejável, catapultada com a passagem para a LottoNL-Jumbo, em 2016.
Tinha então fama de homem de poucas palavras e era conhecido pela frieza e maior contenção em público, contrastando com o exuberante Pogacar, mas sempre foi caracterizado pelos colegas como alguém bem-disposto e que não acusa a pressão de 'carregar' expectativas, como comprovam os 88 triunfos que constam no seu currículo.
Os sucessivos azares que foi acumulando -- também abandonou a Vuelta2022 por queda -- alteraram a sua 'persona' pública, agora mais adequada ao drama que costuma acompanhá-lo.
"É uma boa preparação para a Vuelta", brincou enquanto pedalava durante uma etapa do Tour2022, já depois de ter caído e ter ficado arredado da luta pela geral -- foi fundamental no trabalho para Vingegaard -, num exemplo do seu humor seco e cínico que 'passou ao lado' do seu interlocutor, o ex-ciclista tornado repórter Alberto Contador.
Como nota de rodapé, este pai de dois filhos e antigo estudante de Economia, que ganhou todas as grandes provas por etapas do calendário velocipédico -- à exceção, obviamente, do Tour -, festeja com um gesto típico dos saltos de esqui (o movimento Telemark), tem uma música famosa com o seu nome, criada pelo ciclista e criador Bas Tietema, e criou uma fundação de cariz social, que em 2022 apoiou ciclistas ucranianos que deixaram aquele país após a invasão da Rússia.
Campeão olímpico de contrarrelógio em Tóquio2020, o agora recordista de vitórias na Vuelta é uma verdadeira 'matriosca' e, embora seja altamente improvável que venha a concretizar a obsessão da ganhar o Tour, perdurará como uma das personalidades mais interessantes e ricas do ciclismo atual.