Sporting
04 maio 2018 às 15h52

A história de um miúdo que só quis ser jogador de futebol

Foi central, fez partidas com pasta de dentes, chorou em Itália e não foi para o FC Porto por causa da carta de condução

Bruno Pires

Esta podia ser a história de um jovem que nunca teve um plano B. A única opção passava por ser futebolista profissional e, por esse sonho, estava disposto a sacrificar-se. Falamos de Bruno Fernandes que, aos 23 anos, é uma das sensações da época futebolística nacional tendo-se tornado um dos indiscutíveis do Sporting com exibições de elevada qualidade como a última em Portimão onde bisou e ajudou os leões a igualar no segundo lugar o Benfica, adversário que vai defrontar amanhã.

Tudo começou, como conta ao DN o seu irmão seis anos mais velho Ricardo Fernandes, em Gueifães, na Maia. "A minha família sempre foi toda virada para a bola, tivemos um primo, o Vítor Borges, que jogou no Boavista e outros que jogaram mas não a nível profissional. O Bruno desde cedo que jogava na rua comigo e os meus amigos. Nós éramos todos mais velhos, mas ele nunca tinha medo, a ele não lhe importava se era alto, magro ou gordo. Ainda hoje é assim, ele não tem medo de nada", refere Ricardo, hoje assistente num hospital em Londres mas que até há ano e meio estava vinculado ao Nogueirense.

O não ao FC Porto

A verdade é que pouca gente sabe mas Bruno Fernandes podia estar noutro grande, que não o Sporting. "Ele começou a jogar no Infesta e houve um torneio em que também participaram Boavista e FC Porto. Os responsáveis dos dois clubes assistiram ao jogo do Infesta e isso levou-os a ficarem interessados no Bruno. Falaram com os meus pais. Acabou por ser decisivo o facto de o FC Porto não ter transporte e os meus pais não terem carta de condução. Houve, assim, uma opção pelo Boavista que o ia buscar e pôr a casa, e o Bruno ficou agradado, queria era jogar", conta Ricardo Fernandes.

Central que limpava tudo

Para trás ficava o Infesta e as vezes em que jogava futebol misto. "O treinador por vezes dizia-lhe "Fernandes, cuidado que é menina" e ele respondia "se é menina que não venha jogar"", revela o irmão do médio leonino entre sorrisos, muito devido ao carácter ganhador do agora internacional português. "Ele dava tudo em campo e era tramado, os árbitros às vezes diziam que era melhor ele sair senão tinham de o expulsar. Não era mau, era agressivo no bom sentido", sublinha.

No Bessa durante dez anos jogou a todas as posições no centro do terreno, de central a ponta-de-lança.

"Tivemos um treinador que lhe dizia que se ele quisesse fazer carreira tinha de ser a central. Ele limpava tudo, saía a jogar como se nada fosse, a fintar, reconheço que às vezes tremíamos um bocado mas ele tinha uma enorme confiança nas suas capacidades. Houve até uma época em que jogou a ponta-de--lança, ele fazia muitos golos mas a posição que ele mais gostava era de médio box to box ", diz ao DN Bruno Vieira, colega de Bruno Fernandes durante uma década no Bessa e com quem mantém contacto "quase diário através de um grupo de WhatsApp" formado por alguns antigos futebolistas do Boavista.

O agora médio do Padroense reconhece que na altura em que jogavam juntos "provavelmente ninguém esperava" que Bruno Fernandes atingisse "este patamar". E explica o que mudou: "Ele evoluiu imenso no primeiro ano de júnior, depois no segundo ano quando foi para Itália, para representar o Novara, explodiu completamente. Fez-lhe muito bem ter ido para Itália."

Quase a desistir de Itália

A ida para o Novara acabou por ser um mero acaso que o agora futebolista do Sporting soube aproveitar. "Sei que havia interesse noutro jogador, que eu não sei dizer quem era, mas os observadores ficaram impressionados com o Bruno e ele foi, num processo muito rápido. A decisão foi dele, tinha 17 anos e os nossos pais sabiam que se lhe cortassem as pernas naquele momento ele podia nem vir a ser jogador, ia ser uma revolta muito grande nele. O empresário [ndr. Miguel Pinho] prometeu-lhe muitas coisas que cumpriu, esse foi o passo mais importante da carreira dele", explica Ricardo Fernandes, antes de fazer uma revelação: "Aos 17 anos deixa a família, a namorada, tudo o que tem, e parte para uma aventura em que não fala a língua, não conhece ninguém, a primeira semana foi muito difícil, ele sabia o básico de inglês, mas ninguém falava inglês lá, era muito difícil a comunicação. Na primeira semana quis desistir e voltar, mas falou comigo, com os nossos pais, com a namorada, com o empresário, e as coisas puseram-se à maneira dele."

Bruno Vieira vai mais longe e lembra-se de o seu homónimo ter "chorado muito nas primeiras semanas em Itália" até que "a namorada, hoje mulher, deixou a escola e foi viver para Itália com ele".

Aí veio ao de cima o carácter de Bruno Fernandes e os objetivos que tinha traçado muito antes do surgimento do Novara.

"Se não fosse jogador o que seria? Não há resposta para isso, o que ele queria ser é o que é hoje. Na escola nem era mau aluno, mas não acabou o 11.º ano", afirma Ricardo Fernandes, ao passo que Bruno Vieira tem uma recordação mais concreta. "Ele vinha muito a minha casa e lembro-me de ele ter uma conversa comigo e com os meus pais em que ele disse, de forma convicta, que queria mesmo ser jogador de futebol profissional para ajudar os pais, e felizmente atingiu os seus objetivos. Fico muito feliz por ele, que é uma pessoa que não mudou por estar no patamar em que está. Mantém o grupo do Boavista no whatsapp, nós fomos a Itália ter com ele e ele quando chegava a Portugal ligava logo para irmos jantar", salienta Bruno Vieira que vê um Bruno Fernandes "completamente igual" aos tempos do Boavista em que fora do campo "era muito divertido, estava com os amigos, pregava partidas aos colegas". Quais?, perguntámos. "Por vezes havia pessoal a dormir e ele ia meter pasta de dentes na boca, roubava a roupa interior quando havia colegas no banho ou então entretinha-se a cortar meias (risos) mas ele sabia com quem se havia de meter e nós éramos todos cúmplices uns dos outros."

Pai benfiquista, mãe portista...

Em Itália, Bruno Fernandes evidenciou-se na Udinese e depois foi contratado pela Sampdoria, onde só esteve um ano. Na série A foi comparado a Pirlo, Rui Costa e Pastore, como salientou numa entrevista concedida ao jornal A Bola em agosto de 2015, mas, segundo Ricardo Fernandes, o seu ídolo era outro. "Ele gostava muito do Ronaldinho Gaúcho. Também admirava o João Moutinho, mas o Ronaldinho era o principal", diz Ricardo Fernandes que garante que o irmão tem coração axadrezado.

"Olhe, o meu pai é benfiquista, Eu, a minha mãe e a minha irmã somos portistas, se bem que elas agora dizem que são sportinguistas (risos). O Bruno foi muito cedo para o Boavista, nunca foi de ser do FC Porto, Benfica ou Sporting. Podem não acreditar mas ele é boavisteiro."

"O Bruno diz que agora é sportinguista, mas ele sempre foi boavisteiro, sei que este é um país em que toda a gente é de Benfica, Sporting ou FC Porto mas é a verdade", assegura Bruno Vieira.

Em Alvalade, Bruno Fernandes nem sentiu o impacto de representar, pela primeira vez, um clube que luta por títulos. "Na primeira semana de Sporting sentiu logo que as coisas lhe iam correr bem porque aquilo que o Jorge Jesus lhe pedia já ele estava habituado a fazer em Itália", refere o antigo colega ao passo que o irmão Ricardo admite que Bruno Fernandes "encaixou logo muito bem no Sporting e cedo ganhou o carinho dos adeptos".

A morar perto da Academia, longe do rebuliço de Lisboa, Ricardo explica que o irmão "é um rapaz muito calmo, contido e que privilegia muito o descanso", por isso não passa "sem a sesta": "Ele sempre foi muito responsável. Em miúdo se tinha de estar preparado às 08.00 da manhã, ele às 06.00 já estava acordado, despachava-se e ia ver televisão enquanto comia os cereais. Não era preciso ninguém chamá-lo."

Em Alvalade, Ricardo revela que Bruno se dá bem com "Gelson, Podence e outros jogadores que já conhecia dos sub-21 mas também tem uma boa relação com o Coates, aliás ele sempre se deu muito bem com os jogadores mais velhos".

Ricardo costuma trocar impressões com o irmão sobre as suas exibições e é quando tocamos neste assunto que revela um dos defeitos do médio verde e branco: "Ele é muito crítico em relação a ele próprio, pergunta-me também a minha opinião porque sabe que eu sou sincero, quando joga mal eu caio logo em cima dele (risos). Mas ele tem sempre de dizer mais qualquer coisa. Foi sempre assim desde miúdo. Não interessa se é o Presidente da República, o treinador ou quem quer que seja. Por acaso nunca teve nenhum azar, ele não consegue guardar, se acha que está mal tem de dizer. Diz na hora. Mas atenção que o meu irmão é um excelente rapaz e de um grande altruísmo."

"Sporting já é pequeno"

Com o Mundial à porta, Bruno Vieira considera "ridículo" se o amigo não for à Rússia. E, na sua opinião, isso pode ajudar a abrir outras portas. "Vou ser sincero, com o nível que ele atingiu o Sporting já é pequeno para ele. Ele sempre disse que tinha o sonho de jogar em Inglaterra ou em Espanha, a Itália não o vejo a regressar. Sei que há clubes interessados mas gostava de o ver a ser treinado pelo Guardiola no Manchester City. Mais contido é o irmão Ricardo. "O Sporting é um clube grande, fico muito feliz por o meu irmão estar no Sporting, mas o Bruno quer sempre mais, nunca está bem. Jogar na I Liga portuguesa é bom mas jogar na Premier League ou na Liga espanhola é outra coisa."