A história poderia servir de argumento para um filme, em que se enaltecem valores como solidariedade ou amizade. David de Pina, 28 anos, assumiria o papel principal, e o seu treinador, Bruno Carvalho, 47, ex-pugilista e treinador na modalidade há 20 anos, o de ator secundário, ainda que com uma relevância notável. O foco estaria no primeiro, pois foi ele que, em Paris2024 entrou para o ringue para conquistar a medalha de bronze na categoria de -51 kg em boxe, a primeira da história de Cabo Verde. Mas é preciso dar o devido destaque ao homem que o orienta, Bruno Carvalho, que nunca o deixou desistir. Foi ele quem deu, muito possivelmente, o soco de luva branca que mudou radicalmente a vida do pugilista..Tudo começou em 2021. “O David recebeu um convite para participar nos Jogos de Tóquio e fez um estágio em Portugal. Após a competição manifestou a intenção de continuar a treinar-se no nosso clube, o Privilégio Boxing Club, em Odivelas, e assim foi. Mas já o conhecia desde 2018 e tinha percebido que ele tinha muito potencial”, recorda Bruno de Carvalho ao DN. “Passou a treinar-se connosco desde setembro de 2021”, acrescenta..David Pina, primeiro medalhado olímpico (bronze) de Cabo Verde, num treino no Privilégio Boxing Club.Leonardo Negrão/Global Imagens.Nessa altura, David de Pina deixou Cabo Verde, viajou para Portugal e começou a treinar-se sob as indicações de Bruno Carvalho, selecionador nacional de boxe de Portugal e muito conceituado na modalidade..Sem apoios ou patrocinadores, David, que tem dois filhos, perseguiu o sonho - ao atleta é apenas atribuída pelo Comité Olímpico Internacional uma bolsa mensal de cerca de 700 euros, que se revelam manifestamente insuficientes para o atleta poder treinar-se em alta competição e ter uma vida normal com a família..Bruno Carvalho ajuda a perceber a história. “Em outubro de 2023 ele teve de fazer uma escolha. Chegou muitas vezes ao fim do mês e nem 40 euros tinha para comprar o passe”, lembra o treinador, recordando que o incentivava sempre a não desistir: “Dizia-lhe que tinha vindo para cá para lutar por Paris2024 e que não podia deixar de treinar. E ajudei-o como podia.”.“Mas chegámos a uma situação crítica, ele não tinha dinheiro, a mulher já estava também com problemas, um acumular de dívidas, era um problema gritante, até que ele decidiu deixar mesmo o boxe para se dedicar a trabalhos de carpintaria. No Algarve, ainda por cima. Não conseguíamos treinar, mas ele conseguiu um ordenado que permitia ajudar a família”, recorda o treinador..David de Pina regressou a Lisboa em janeiro de 2024, pois estava agendado para fevereiro, em Itália, um primeiro apuramento olímpico. Havia muito pouco tempo para trabalhar e ambos sabiam disso. Mas o objetivo não foi alcançado - David de Pina ganhou o primeiro combate, mas perdeu o segundo. Desiludido, voltou a pensar em desistir. Numa conversa aberta e sincera, Bruno Carvalho fez-lhe ver que essa não era a solução. Dinheiro não era sequer assunto. “Quem não tem possibilidade de pagar para treinar, nós estamos lá para dar a mão. Ali, ninguém vai desistir por não ter dinheiro”, garantiu. “O David é um atleta top. Um diamante, muito inteligente e resiliente”, acrescentou..Solidariedade e mais apoios.O pugilista prosseguiu então a sua preparação. Para maio estava agendado novo apuramento olímpico, agora na Tailândia. Era a última oportunidade para David garantir presença em Paris..Pugilista e treinador cumpriram então uma preparação perfeita. Cada adversário foi analisado ao pormenor, houve noites mal dormidas a analisar a forma de lutar de cada oponente, combate a combate, um deles até em jejum por questões estratégicas. E o grande objetivo foi alcançado. Pina garantiu presença nos Jogos Olímpicos. “Foi, até ali, o meu maior momento a nível profissional. Ali culminava o sonho do atleta, mas também o meu. Queria muito ir aos Jogos Olímpicos. Foi um momento áureo”, atirou Bruno Carvalho, com um brilho no olhar a reviver a emoção..David Pina, primeiro medalhado olímpico (bronze) de Cabo Verde.Leonardo Negrão/Global Imagens.O resto da história é conhecida. David de Pina conquistou o bronze em Paris, a primeira medalha olímpica para Cabo Verde. Na origem do sucesso esteve o tal soco de luva branca, onde se fala sobre amizade e solidariedade..“Sinto-me um privilegiado por termos conseguido isto, é um sentimento de orgulho brutal, é sinal de que o caminho foi bem feito”, realçou o treinador. “A solidariedade? Isso tem a ver com cada um. Sou uma pessoa simples, introvertida, é difícil fazer amizades a curto prazo, mas quando são meus amigos também me entrego. E entrego-me com todos os atletas, não só com o Pina. Quando dou apoio, faço-o de coração. Quando apoiei o Pina nem sabia se ele ia aos Jogos Olímpicos. Vou com eles até ao fim do mundo, mas têm de me dar o mesmo em troca. É assim que funciona”, desabafou..Quanto a apoios e patrocinadores, Bruno Carvalho espera agora que o atleta e a família não voltem a passar por necessidades: “Fomos a Cabo Verde um dia depois de chegarmos de Paris, estivemos lá 10 dias, reunimos com os governantes e com outros responsáveis do país, e todos disseram que a vida do David ia estar salvaguardada, com um contrato de quatro anos com uma bolsa fixa, que dê para ter uma vida digna. Saímos de lá com essa bolsa garantida, falta agora pôr no papel. Se todos mantiverem a palavra tem a bolsa assegurada e vai voltar a representar Cabo Verde nos Jogos de Los Angeles.” O filme pode, pois, ter continuação, agora com menor carga dramática. David de Pina e Bruno Carvalho assim esperam....dnot@dn.pt