"Os atletas não podem ficar limitados aos empregos que ninguém quer na Função Pública"
O presidente da Associação de Atletas Olímpicos de Portugal elogia medidas do governo para o pós-carreira, porque "é preciso dar dignidade" a quem representou o país, mas pede uma reflexão nacional sobre o Desporto e aponta o dedo às federações e ao Comité Olímpico de Portugal, que "só sabem pedir dinheiro".
Luís Monteiro foi atleta do pentatlo, esteve nos Jogos Olímpicos de 1984, em Los Angeles, e assistiu de perto às medalhas históricas de Carlos Lopes e Rosa Mota. Desde 2021 que é presidente da Associação de Atletas Olímpicos de Portugal (AAOP), criada em 2003.
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Como vê as novas medidas do Governo de apoio ao pós-carreira, que propõe isenções contributivas, ajudas financeiras e quotas até 5% para empregos na Função Pública para atletas Olímpicos e Paralímpicos?
São positivas. O secretário de Estado tem-se empenhado em resolver algumas destas questões estruturais, mas os recursos são limitados e, por vezes, as propostas ficam na gaveta. Espero que não seja o caso. Sobre a empregabilidade, aquilo que me transmitem é que há poucos concursos com vagas de 15 pessoas, para ter 5% disponíveis para atletas. Vamos ver daqui a um ano... Os números atuais de atletas a trabalhar em organismos públicos são fracos para não lhe chamar miseráveis. Há uma boa prática das autarquias em empregar atletas olímpicos, mas não é nada estruturado, é fruto de carinho local. Alargar esta boa prática a nível nacional seria ótimo.
Só carinho não chega...
É preciso dar dignidade a quem se entrega a uma carreira no desporto e a representar Portugal. E para isso é preciso pensar no pós-carreira. Os atletas chegam cada vez mais tarde ao mercado de trabalho e não conhecem outra realidade para lá da prática desportiva. Mesmo quem estuda e se capacita não tem qualquer experiência para entrar no mercado de trabalho. Há mais literacia e mais atletas licenciados mas, mesmo com o curso na mão, é complicado arranjar emprego. Integrar um ambiente de trabalho torna-se complicado e as empresas não contratam pessoas com quase 40 anos para o primeiro emprego, quanto mais atletas. E não é pondo dinheiro em cima do problema que o resolvemos.
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Como assim?
As políticas desportivas estão centradas à volta do dinheiro. As federações só sabem pedir dinheiro, o Comité Olímpico de Portugal (COP) só sabe pedir dinheiro. Por muito mais dinheiro que se dê, os resultados são sempre os mesmos porque não se resolvem as questões estruturais. Ainda há dias o secretário de Estado disse que tínhamos de fazer uma reflexão nacional. Vamos a isso. Temos de pensar como vamos alinhar todos os players do desporto e pensar a 10 ou 15 anos. Esse é um problema e é isso que falta. Ninguém quer fazê-lo porque obriga a escolhas. É preciso que alguém assuma "vamos apostar nesta modalidade, por isto e mais isto...". O propósito tem de ser revelado para não termos pessoas a pensar na sua quinta sem ver a conjuntura global. Por isso é tão importante profissionalizar as estruturas e não termos um desporto gerido por carolice e Calimeros de fim de semana.
Já disse isso a quem de direito?
Já. Ficam todos incomodados quando digo que não é uma questão de dinheiro, porque vivem com pouco, mas contentam-se com pouco. Os atletas não têm voz neste país. Zero. Porque não fazemos parte da Confederação do Desporto? Quantos atletas estão no Conselho Nacional do Desporto, o órgão máximo, que tem 44 membros? Para deliberar deve ser um espetáculo. Está lá representado a Comissão de Atletas Olímpicos, que é independente, na esfera do COP, e depois há atletas em nome individual. AAOP devia lá estar e já o disse isso ao secretário de Estado.
"O atleta não pode pensar no pós-carreira de forma quase traumática. Eu sei de atletas que adiaram o fim da carreira para continuar a ter o apoio e o subsidiozinho e isso preocupa-me a muitos níveis, a começar por não terem ferramentas para fazer outra coisa."
As quotas de emprego resolvem o problema ou vão criar ainda mais estigma pelo privilégio dado?
É preciso transparência. Os atletas têm de obedecer às questões de mérito e de competência, mas não podem ficar limitados aos empregos que ninguém quer na função pública. O Jorge Fonseca é um exemplo para a Sociedade. Saber que chumbou num exame de cultura geral pela comunicação social e antes de uma prova foi terrífico para ele e afetou a imagem dele. Será que a Sociedade iria compreender que ele entrasse para a polícia por quota? Sim. Se fosse visto como exemplo e no caso eu considero que é. Ele não é só força e músculo, ele é um mestre de xadrez no tatami. Fomos mais ambiciosos e propusemos que os anos de carreira fossem critério para efeitos de reforma e pedimos um seguro de saúde para a vida. São pedidos legítimos para carreiras de desgaste rápido. O secretário de Estado tem mostrado muita iniciativa e já avançou com a reformas importantes, mas falta saber se existe um plano geral porque os atletas podem e devem contribuir.
É preciso parar para pensar, mesmo sacrificando um ciclo olímpico [quatro anos]?
Mesmo que se sacrifique um ciclo olímpico. Porque a lógica dos resultados faz com que nunca se planeie a longo prazo. Assinamos um contrato programa com o objetivo de medalhas... [silêncio]. Pensamos a curto prazo e com o objetivo de justificar o financiamento para daqui a uns anos pedirmos mais. O desporto não se pode fechar sobre si mesmo. Até nós temos dificuldade em entrar em alguns círculos.
O discurso se calhar não ajuda...
Eu só defendo que se façam escolhas, com base numa estratégia. Falta alguém que não queira ficar bem com Deus e o diabo.
Que maiores preocupações revelam os ex-atletas?
Há 811 atletas olímpicos vivos e 10% estão no ativo. Os mais antigos, aqueles que abriram caminhos e quebraram barreiras, estão muito magoados. Quando cheguei em 2021 liguei a alguns e mandaram-me dar uma curva, uns não tinham qualquer interesse em ouvir falar da associação nem de desporto. Hoje estão mais envolvidos e reconhecem que queremos dar dignidade e termos capacidade interventiva, seja com cursos universitários, de empreendedorismo ou a falar da saúde mental. O atleta não pode pensar no pós-carreira de forma quase traumática. Sei de atletas que adiaram o fim da carreira para continuar a ter o apoio e o subsidiozinho e isso preocupa-me a muitos níveis, a começar por não terem ferramentas para fazer outra coisa. É preciso dar-lhes uma saída dentro do próprio sistema desportivo. Os atletas não podem ser todos dirigentes, mas a percentagem atual é ínfima, miserável mesmo. E nem as federações cumprem a Lei de Bases que diz que têm de ter um representante dos atletas.
Não lhe parece que, por vezes, o atleta autoexclui-se?
É verdade, mas têm de lhes abrir essa via, que parece bloqueada.
Como pedir ao atleta para ter voz, se ele passa anos a ouvir que só tem de se preocupar em treinar e competir?
Esse é o ponto. A perceção que as pessoas têm do atleta é redutora, estigmatizante e desprestigiante salvo algumas exceções. Veja-se o Rui Costa. Ele próprio admitiu-o numa reunião que teve comigo. Se isso se passa com um Rui Costa, que foi um futebolista de excelência, e é presidente do Benfica que é uma das maiores instituições do país... Ouvir dizer "estás aqui é para treinar e não para falar, como bíblia do treino" e retrógrado para não dizer repugnante. Os atletas não são estúpidos, mesmo a forma como se treina hoje em dia revela muita inteligência, saber como pode potenciar as suas capacidades físicas. É preciso acabar com o estigma, que leva muitas vezes o atleta a calar a própria voz, refém disto e daquilo.
A proposta do Governo fala no pós carreira como "objetivo estratégico" para "a afirmação de Portugal no contexto desportivo internacional" e "a excelência da prática desportiva e melhorando os Programas de Preparação Olímpica e Paralímpica"...
E bem. O pós-carreira é essencial para dar segurança ao atleta e se dedicar à competição sem medo do que vem depois, porque a carreira é só 30% da vida dele. Temos de acabar com o abandono no desporto no ensino superior, que é uma percentagem enorme. O secundário tem dado o exemplo e já tem 1000 alunos e 23 escolas no projeto das Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola (UAARE), prática elogiada e replicada em tudo mundo, mas é preciso criar o fio condutor desde a atividade atividade física de laser ao topo da pirâmide. Focar nos resultados e pedir dinheiro é só loucura.
Como fazer então? Separar o alto rendimento do desporto de lazer?
É preciso começar por colocar as pessoas a mexer e praticar desporto e só depois pensar na competição. Ter cerca de 650 mil atletas federados é pouco para um país de 11 milhões. Se a nossa base é paupérrima a certa altura só queremos é encontrar talento, quando o desporto não devia ser resultadista. O Desporto de alta competição pode até ser, mas também é saúde e educação. Puseram 47 milhões no Desporto Escolar ótimo. Qual é a ligação para a alta competição? Qual é a estratégia? Nós já estamos na fase em que andamos à procura de talento nas escolas, quando devia ser o talento a emergir da prática do Desporto Escolar. Ele existe? Se existe algo falhou ao nível da comunicação para lhe dar visibilidade.
Quem devia ter o papel estruturante? A Confederação do Desporto? O Conselho Nacional do Desporto?
Estão ambas a falhar nesse papel de entidade-supra do Desporto, que regule tudo, desde a profissionalização do Desporto à criação de uma visão-missão e como pode ser um meio para uma Sociedade melhor e trazer a sociedade civil para o Desporto. Quem é que fica feliz com as medalhas e em ouvir A Portuguesa... os adeptos. Se a Sociedade perceber que o Desporto pode ser reflexo e contribuir para uma Sociedade mais justa, inclusiva e solidária faz sentido investir no desporto, no desporto de alta competição e no desporto de alto rendimento. O que é que a Confederação do Desporto faz e como se alinha com o COP? E que papel se reserva o Estado? É permitir a criação de uma federação conferindo-lhe estatuto de utilidade pública, quando tem 500 praticantes? Volto a dizer, é preciso fazer escolhas e dou o exemplos das federações de canoagem e a de natação como exemplos a ser replicados.
Disse que os atletas não têm voz. E a AAOP dá-lhe voz? Tem cumprido o propósito para que foi criada?
Tenta. Eu apareço muito, é uma estratégia de comunicação como outra qualquer. O presidente da AAOP tem de ter uma presença forte, credível. A estratégia não é assente na visibilidade. Não vim para a associação a pensar em dar o salto para algum lado...
... Nem para a presidência ao Comité Olímpico de Portugal?
Não está me cima da mesa essa possibilidade. Não tenho a mania que sou bom, mas o que faço é bem feito e se me perguntar: "Acha que faria um bom trabalho no COP?" Eu diria: "Seguramente que sim." Se eu fosse presidente do COP ia querer ter uma AAOP muito forte para complementar o meu trabalho e faço um apelo aos atletas do atual ciclo Olímpico para que não olhem para a AAOP como símbolo da reforma, mas como uma garantia de vida com mais qualidade no pós-carreira. Um mandato na AAOP não chega para lançar as bases deste projeto e deixar obra, mas oito anos é o meu máximo. Não me vou perpetuar. Depois venha o próximo com energia e ideias novas.
isaura.almeida@dn.pt