O lugar da mulher é no campo de basquetebol e sem ouvir que tem “braços de homem” e “calções largos”
O lugar da mulher também é num campo de basquetebol, mas sem ouvir bocas como “tens braços de homem” ou "os calções são muito compridos, podiam ser mais curtos". Ou ainda “que o basquetebol feminino atrai menos investimento" e "é uma seca", contam duas das melhores basquetebolistas do campeonato português. Inês Faustino (Benfica) e Gabriela Raimundo (Esgueira) abriram o coração ao DN a propósito do Dia Internacional da Mulher e da campanha do patrocinador da Liga feminina, a Betclic, e da Federação Portuguesa de Basquetebol (FPB) contra o preconceito e a desigualdade de género.
A Wilson também se associou à iniciativa e criou uma bola especial, que iniciará todos os jogos com mensagens negativas escritas com uma caneta de tinta termossensível, que à medida que o jogo decorre e as mãos das jogadoras aquecem a bola, as frases desaparecem - um gesto simbólico que reforça a resiliência das atletas de uma modalidade onde as mulheres têm cada vez mais impacto. Todas as frases refletem simbolicamente um insulto, um preconceito ou algo de uma inconveniência gritante como "uma menina não devia jogar".
Para Inês Faustino, o que custa mais ouvir são os comentários aos corpos das mulheres que jogam basquetebol. "Normalmente são corpos mais musculados e os comentários são do género, 'têm braços de homem' ou 'grande perna, deviam mostrar mais', 'os equipamentos são muito largos, deviam ser mais justos ou jogar com calções mais curtinhos'", descreveu a jogadora de 32 anos, confessando que "é violento" ouvir, mesmo de pessoas amigas e até familiares que “as raparigas não dão espetáculo e que o jogo é uma seca”. Algo que os 92 pontos marcados no último jogo pela equipa do Benfica contrariam.
É preciso ter poder de encaixe, mas o que não mata mói e há atletas que desistem porque são mais frágeis psicologicamente ou pura e simplesmente não estão para ouvir coisas que as desvalorizam, segundo a a jogadora do Benfica.
"Já jogo há muitos anos e assisti a muita coisa. Neste momento não sou profissional 100%. Tive alguns momentos da minha carreira em que fui, mas é muito difícil conseguir ser profissional em Portugal”, confessou a atleta do Benfica, que faz jus ao ditado popular que diz que uma mulher consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo. É personal trainer e como trabalha por conta própria consegue conciliar o trabalho com o curso de osteopatia e o basquetebol de elite: “Eu considero-me profissional, treino como profissional, sinto-me profissional, só não ganho como profissional.”
A basquetebolista do Benfica admite ainda que nos últimos oito meses a cabeça nem sempre descansou como devia. Muitas vezes entra em modo automático, mas quando chega a casa, ao final do dia, sente-se “bastante realizada” e isso "é muito importante".
Segundo Inês Faustino, a sociedade devia aprender algumas coisas com o basquetebol, embora admita que a desigualdade entre homens e mulheres "é muito maior no desporto do que em outras áreas", principalmente em termos salariais: "Saiu a lista do top 100 de desportistas mais bem pagos do mundo e nem uma mulher. Nem mesmo a atleta mais bem paga do Mundo tem lugar nos 100 mais bem pagos do desporto e isso dá que pensar."
Se pudesse, Inês Faustino, salvaguardava a maternidade contratualmente - algo que modalidades como o futebol, por exemplo, já fazem - porque é preciso dar segurança às atletas e ajudar a mudar mentalidades. A começar nos balneários.
“Muitas jogadoras assumem que se ficarem grávidas abandonam a modalidade. Eu penso em engravidar depois de abandonar. Nunca consigo idealizar ter um filho e voltar a jogar", revelou, reconhecendo que Márcia Costa, que foi considerada a melhor jogadora da última década, teve um papel muito importante a desconstruir isso e mostrar que é possível ser mãe e voltar a jogar. A internacional portuguesa ficou grávida aos 31 anos, jogou até aos cinco meses e regressou depois de ser mãe e ajudou a seleção a apurar-se para o primeiro europeu da história no mês passado e já com 35 anos, como contou ao DN.
"Estudo que revela que 70% das lesões acontecem durante o período menstrual"
Antes das jogadoras sequer pensarem em serem mães há algo que precisa de ser encarado por todos. O período menstrual é um tabu que é preciso quebrar. Muitas jogadoras (ou quase todas) são medicadas para impedir que tenham o período. “Nós não temos que estar ser sempre medicadas e ignorar que temos a menstruação. O que acontece é que, como somos medicadas no início da época, temos o período na mesma altura. Esse é um ponto muito interessante porque recentemente saiu um estudo [2021, da Universidade de Lincoln e Federação de Futebol de Inglaterra] que revela que 70% das lesões acontecem durante o período menstrual, isso é uma coisa que devia ser mais falada e tida em atenção por treinadores, dirigentes”, segundo Inês Faustino.
A basquetebolista deixa no entanto um reparo à Federação Portuguesa de Basquetebol no que aos equipamentos diz respeito: "Houve pedidos para que fosse possível usar alguns calções mais escuros e, na altura, a liga não permitiu por causa do regulamento. As regras da competição dizem que o calção tem que ser igual à camisola e sempre na mesma cor. Algumas equipas tentaram jogar com um calção diferente e de cor mais escura para o caso de algumas jogadoras eatarem com o período. Até porque, se a atleta se sentir mais confortável vai jogar melhor e render mais.”
Esgueira lidera do campeonato, mas não tem publicidade na camisola
Tal como Inês, também Gabriela Raimundo se habituou a ouvir coisas como, "os teus braços são muito musculados, masculinos", ou, "os calções podiam ser mais curtinhos". Algo que custa ouvir, assim como massacra o ego ouvir uma e outra vez que "o jogo feminino não tem o mesmo espetáculo do masculino e como não gera o mesmo dinheiro, as atletas não podem exigir as mesmas condições". E por isso é tão importante que a BetClic promova a igualdade de apoios, segundo a atleta do Esgueira.
Desde 2021 que a BetClic patrocina as ligas masculina e feminina em igualdade e isso é um bom exemplo que o patrocinador e o basquetebol dão ao desporto e à sociedade, segundo Gabriela, porque "homens e mulheres merecem oportunidades iguais".
Este compromisso valeu à marca a atribuição do 1.º Selo da Igualdade de Género no Desporto, desenvolvido pelo Instituto Português do Desporto e Juventude, e Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e permitiu à Federação liderada por Manuel Fernandes dar melhores condições e maior visibilidade à liga feminina.
Mas isso não significa que não haja muito a melhorar ao nível dos direitos laborais, do respeito ou da mudança de mentalidades. Gabriela e as colegas têm sentido na pele "a tristeza e frustração" de serem líderes do campeonato e não terem uma marca a apoiar ou a patrocinar a equipa: "Somos líderes do campeonato, estamos em primeiro. Jogamos sem publicidade na camisola. Não temos valor para apostarem em nós?"
A indignação da jogadora, que tem um irmã gémea, Ana, como colega de equipa, é justificada pela falta de reconhecimento que sente fora da esfera desportiva, onde vulgarmente ouve que "basquetebolista não é profissão".
Em fevereiro, a seleção feminina conseguiu um inédito apuramento para o Eurobasket2025, “com todo o mérito”, segundo a basquetebolista do Esgueira, que lamenta que uma jogadora ainda precise de tirar férias para ir a um estágio ou representar a seleção: "Essa ainda é a realidade. As jogadoras perdem dinheiro para representar a seleção, têm de perder dias de trabalho ou abdicar das férias, mas fazem-no por amor à camisola e ao basquetebol."
No caso dela, que decidiu trabalhar para ter "alguma independência financeira" e não depender do dinheiro dos pais, o emprego levanta problemas, que ela tem conseguido gerir. A jogadora do Esgueira trabalha numa empresa de estatísticas ligadas ao desporto e o trabalho é precisamente ver jogos de várias modalidades e assinalar os lances relevantes, sendo que a grande maioria dos jogos de todas as modalidades são no fim de semana... precisamente os dias em que ela intensifica os treinos ou tem jogos e quando o patrão exige maior disponibilidade dela.
Basquetebol perdeu 5 mil jogadoras na última década, mas inverteu queda
O basquetebol feminino tem vindo a ganhar atletas no pós-pandemia da covid-19, invertendo assim a queda de quase cinco mil jogadoras na última década. Passou de 15.409, em 2013-14, para 10.312, em 2023-24. Ter um português a entrar na NBA em 2019 ajudou. "Neemias Queta [Boston Celtics] deu muita visibilidade ao basquetebol português e às nossas ligas. Os jogos passam em canal aberto e isso fez com que os números tenham aumentado. O futuro é muito risonho", segundo Inês Faustino, que lembra ainda que neste momento as duas seleções, feminina e masculina, garantidas no Campeonato da Europa deste ano.
Também Gabriela Raimundo reconhece que isso irá valorizar o basquetebol português: "Todos os dias penso no dia em que poderei ser profissional de basquetebol em Portugal. Já tenho 31 anos, talvez já não seja para mim. Com a seleção no Eurobasket vai haver mais visibilidade, vai-se falar mais de basket e portanto, o futuro será melhor."