Fernando Santos: "Portugal conseguiu ser campeão da Europa, também pode dar a volta a isto"

O selecionador nacional de futebol viveu bem de perto os dramas da pandemia, com amigos e familiares afetados. Mas mantém um olhar positivo sobre o futuro e acredita que o desporto terá um papel importante.
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Fernando Santos, que comandou a seleção nacional de futebol na conquista do Europeu 2016, admite estar "cansado da pandemia". Mas considera que o confinamento e as cautelas sanitárias não só lhe merecem o maior respeito - "uso a máscara por respeito a si", afirma - como crê que algumas destas atuais rotinas - inclui o distanciamento social - permanecerão no tempo, embora apenas como hábitos e não por obrigação. A pandemia "vai deixar marcas na pessoa em si", resume.

Revendo o último ano, o selecionador deixa, em entrevista, mensagens de esperança e uma visão lúcida sobre os impactos no desporto e na sociedade. E começa por assumir o seu modo de convivência com a covid-19: "Afetou a vida de muitas pessoas, não só o desporto." O seu testemunho começa nos primeiros dias do primeiro confinamento: "Questões pessoais pelas quais passámos, uns com mais intensidade, outros com menos. Faz um ano, agora, que houve o primeiro caso [fatal] em Portugal: um grande amigo meu, o Veríssimo, que trabalhou no Estrela da Amadora. O Foca, com quem almoçava e jogava às cartas. Isso marcou-me a mim e aos que conviveram com ele. Foi um primeiro impacto, não sabíamos bem o que ia acontecer."

Sucedeu-se o falecimento da sua mãe: "Foi um momento que não gosto de lembrar. Desde logo por ser minha mãe, mas por tudo o que então aconteceu. Aquela experiência, naquele primeiro confinamento, em que ao cemitério só podiam ir três a quatro pessoas e nem podíamos ver o corpo... Foi uma cena macabra. Só estava eu, com os meus filhos e a minha mulher. Era um dia de chuva e, depois, estavam umas pessoas de branco, que nos mandaram parar. Aquilo parecia um filme de ficção científica. Traumatizou bastante. E esse luto, ainda não o fiz, ainda não o consegui fazer."

Fernando Santos viu-se confrontado com "situações difíceis que se continuam a arrastar no tempo. A infelicidade de ser apanhado pela covid deixa marcas". "O meu filho [infetado] fazia maratonas e... hoje, até para andar uns metros se vê um bocadinho aflito. Já saiu do hospital e está bem. Mas ainda tem sequelas."

Voltando o foco para o desporto, recordou a paragem e o reinício do campeonato, com a ausência de público que marcou o fim da época passada e prossegue na atual. E juntou-lhe a experiência da seleção: "É um ano muito marcado, no desporto, pela ausência daquilo que é fundamental, a falta de carinho, a ausência de sentimento, que é aquilo que é importante, que junta e une as pessoas. E no futebol também desapareceu essa ligação dos atletas uns com os outros e com o público. Nós, que estamos no desporto, precisamos disto para viver, desta adrenalina, desta confrontação."

"Acho que o desporto, sobretudo o futebol, cumpriu muito bem as regras", afirmou, recordando episódios que estranhou quando das convocatórias da seleção: "Parecia uma coisa de ficção científica, testes de manhã, à tarde e à noite, o momento confuso com três casos, [infetados] começámos a comer afastados uns dos outros..."
O selecionador nacional recorda que no estágio de outubro nunca fez um treino como programado e que "as conversas no treino não eram de futebol", acrescentando que grande parte do tempo destinado a questões técnicas se focou nos condicionalismos, como fronteiras fechadas e quarentenas obrigatórias.

Confessou ser da opinião de que, no fundo, a pandemia não afetará o futuro do futebol - "não é por não haver formação durante um ano, muito menos ao nível da seleção", afirmou -, acreditando numa "rápida recuperação". Porém, admitiu que noutras modalidades houve situações mais complicadas: "Nos desportos individuais foi tremendo. Preparam-se os atletas de alta competição durante um ano, focados naquele momento, naquela presença transcendente que são os Jogos Olímpicos... Há todo um trabalho e não há sequência final."

Fernando Santos junta a sua voz à dos que consideram que o desporto e a atividade física devem ser considerados prioridade no desconfinamento. Embora, sem papas na língua, ponha o dedo numa ferida atual quando se trata de um debate estrutural: "É tudo muito difícil. Terá de haver conclusões e, depois, encontrar solução. Mas hoje diz-se que é branco, depois é preto, depois é cinzento, depois toda a gente reclama, depois há os que não reclamam, todos sabem tudo, sabem de economia, política, de covid, e a certa altura está tudo muito confuso."

"Há que perceber que esta questão é de saúde pública, e esta é a mais importante de todas", sublinha o selecionador nacional, para quem "o governo terá de ter essa atenção, a de que o desporto terá de fazer parte da vida das pessoas, porque é o que leva a que a saúde mental regresse".

Por fim, palavras de esperança e motivação: "Acho que as pessoas têm de acreditar: isto vai acabar. Mas se não fizermos nada por isso, não acaba. Tenho a fortíssima convicção de que vamos superar isto." E parafraseia o filósofo Sócrates: "Um dos problemas, muitas vezes, é que queremos transformar o mundo e esquecemos que, para o mundo se transformar, temos de nos transformar a nós próprios." Em resumo: "Não podemos estar à espera que o vizinho venha resolver o nosso problema." E, com um largo sorriso, exemplificou: "Portugal conseguiu ser campeão da Europa, também pode dar a volta a isto. Os portugueses são capazes. Com alguns traumas? Sim! Mas podem."

Diretor do jornal O Jogo

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