Desistiu em nome da saúde mental. A medalha da vida de Simone Biles
Salto abaixo do padrão fez soar os alarmes da ginasta, que abandonou a final por equipas e deixou o mundo em choque ao revelar que lida com "demónios" na sua cabeça.
Vista como imagem da perfeição, Simone Biles afinal também tem imperfeições! A superestrela da ginástica abandonou esta terça-feira a final feminina por equipas de Tóquio 2020 em nome da "saúde mental". A justificação para a desistência chegou pela voz da própria, depois da subida ao pódio para receber uma prata (e não um ouro como esperado) e já depois da federação de ginástica dos EUA ter admitido um "problema médico". Já esta quarta-feira, a federação de ginástica dos EUA confirmou que a atleta também não vai participar na final individual do all-around. Restam os aparelhos para a semana.
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A ginasta retirou-se depois de um salto mal sucedido e com pontuação abaixo dos padrões (13.766, a mais baixa que já obteve num salto olímpico, e tendo em conta que costuma pontuar quase 17 mil). Depois de se impulsionar perdeu-se no ar, realizando apenas uma volta e meia, quando o plano eram duas e meia. Já lhe tinha acontecido o mesmo nas eliminatórias e no aquecimento: "Já não confio tanto em mim mesma como antes e não sei se é a idade. Fico um pouco mais nervosa. Depois da performance que tive, simplesmente não quis continuar."
Ver a tetracampeã olímpica de ginástica artística no Rio 2016 falhar é algo raro e estranho. Por isso os três erros cometidos nas eliminatórias e no aquecimento denunciavam que algo não estava bem. Física ou mentalmente, era a questão. "Assim que piso o tatami, sou só eu e a minha cabeça a lidar com demónios. Tenho de fazer o que é certo para mim e tenho de me focar na minha saúde mental. Temos de proteger a nossa saúde e o nosso bem-estar e não fazer apenas o que o mundo quer que façamos", desabafou depois Biles.
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"Assim que piso o tatami, sou só eu e a minha cabeça a lidar com demónios. Tenho de me focar na minha saúde mental."
Até aqui o discurso impressionava pelo conteúdo, mas só quando se desfez em lágrimas deu para ver o descontrolo emocional que estava a sofrer. "Sinto que não me estou a divertir tanto e sei que estes Jogos Olímpicos... Eu queria que fossem para mim", atirou.
Para entender o que queria dizer é preciso conhecer a história de vida da rainha da ginástica que nunca conseguiu ser apenas uma rapariga de 1,42 metros. Desde uma infância marcada pela toxicodependência da mãe até à adoção, passando pela entrada na ginástica e o duro treino com Márta Károlyi (a treinadora de Nadia Comaneci que não permitia alegria nos treinos), a prisão do irmão por homicídio e os abusos sexuais por parte de Larry Nassar, ex-médico da ginástica norte-americana... até à pressão diária da perfeição e das medalhas. Está tudo na autobiografia Courage to Soar: A Body in Motion, a A Life in Balance (2017), que escreveu quando fez um ano sabático para lidar com esses demónios que agora a voltam a assombrar.
Na vida de Simone nunca houve espaço para o divertimento, apenas para a repetição até chegar à perfeição. E ela chegou. Tanto que agora a imperfeição é que é a notícia. Mas aos 24 anos, Biles resolveu dizer ao mundo que a diversão também é importante: "É uma merda que isto aconteça aqui nos Jogos Olímpicos... mas, com o ano que tem sido, não estou surpreendida com a forma como aconteceu. Ninguém quer sair do Jogos Olímpicos numa maca."
E se ninguém duvida que ter Simone Biles é garantia de ouro, basta ver que sem ela os EUA falharam ontem a revalidação do título Olímpico de Londres 2012 e Rio 2016. Depois de ter ganho o torneio por equipas masculino, a Rússia (ou ROC, sigla do Comité Olímpico Russo sob a qual competem, depois do veto à Rússia por causa do escândalo antidoping denunciado em 2016) fez a dobradinha ao conquistar o título do feminino, graças aos desempenhos soberbos das ginastas Vladislava Urazova, Viktorija Listunova, Angelina Melnikova e Liliia Akhaimova.
Desabafo ajuda para as outras finais?
Ficou logo em dúvida a sua presença nas finais individuais - esta quinta-feira no all-around e nos quatro aparelhos na próxima semana - onde tem previsto executar o salto duplo de Yurchenko e onde se pode tornar na mais medalhada da história (igualando ou batendo Latynina). O desabafo pode ajudar, tendo em conta que ainda tem finais individuais para cumprir? "Sim. Pelo menos para alertar as pessoas para um problema e baixar as expectativas e a pressão sobre ela", explicou ao DN o psicólogo do Desporto, Jorge Silvério.
"Ter o "peso do Mundo em cima dos ombros" como ela diz reflete bem aquilo a que está sujeita e o que sente. A ginástica artística é uma modalidade que cultiva a perfeição e a partir do momento em que ela habitua as pessoas a essa perfeição colocou essa pressão em si mesma. Isso a juntar a tudo o que ela já passou em apenas 24 anos criou um cenário propício a que isto acontecesse", disse o psicanalista, lembrando que mesmo os superatletas como Simone são seres humanos e como todos os seres humanos está sujeita a um esgotamento mental.
Michael Phelps a Naomi Osaka
Os problemas mentais em atletas de elite deixaram de ser tabu em 2016, quando o nadador Michael Phelps admitiu que pensou em colocar um fim à própria vida, após os Jogos Olímpicos de 2012. A confissão da lenda viva do desporto, dono de 23 medalhas de ouro, três de prata e duas de bronze nos JO, abriu os olhos para a doença "mais incapacitante de todas", que afeta mais de 300 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Também a campeã olímpica de judo, Rafaela Silva, procurou ajuda para lidar com a pressão. Assim como a lançadora Olímpica Raven Saunders, as estrelas da NBA Kyre Irving e Paul Pierce, ou os futebolistas Di María e Iniesta e o tenista português João Sousa.
Em junho foi Naomi Osaka a desistir de Roland Garros "em nome da saúde mental". Só voltou em Tóquio 2020 - acendeu a Tocha Olímpica - onde foi eliminada nos oitavos de final pela a checa Marketa Vondrousova.
[Artigo atualizado às 08:00 de quarta-feira, dia 28 de julho, depois de se saber que a ginasta Simone Biles também não participaria na final individual.]
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