Desde que saiu de Portugal, em 2004, para assumir o comando do Chelsea, José Mourinho já teve a oportunidade de defrontar o FC Porto e também o Sporting na Liga dos Campeões. O Benfica foi apenas seu adversário numa edição da Eusébio Cup, em 2008, numa altura em que treinava o Inter de Milão..O destino tem adiado o seu reencontro ao mais alto nível com o clube que lhe deu a primeira oportunidade como treinador principal, depois de um longo tirocínio junto de Bobby Robson e Louis van Gaal. Nesta quarta-feira, Mourinho regressa à Luz como treinador do Manchester United. Uma Luz diferente daquela que conheceu, pois o estádio é novo, os dirigentes não são os mesmos e os jogadores têm indubitavelmente mais qualidade do que aqueles que teve à disposição nos 11 encontros em que orientou o Benfica..Mas vamos recuar 17 anos. Estávamos em setembro de 2000 quando a relação entre o Benfica de João Vale e Azevedo e o alemão Jupp Heynckes estava no limite do insustentável. Uma vitória sofrida diante do Estrela da Amadora precipitou o divórcio e a questão punha-se: quem é o homem mais indicado para assumir o comando técnico de um clube que não sabia o que era ganhar um título desde 1994?."Quando foi decidida a mudança do treinador havia diversas hipóteses. O José Manuel Capristano, vice-presidente do futebol, defendia com unhas e dentes o Toni. O presidente João Vale e Azevedo queria um treinador novo, diferente", relembra ao DN Eládio Paramés, à época responsável pela comunicação do Benfica e já então amigo de José Mourinho pela relação que cultivaram quando Paramés foi jornalista..Duas figuras centrais."A verdade é só uma: Toni era o nome pensado para suceder a Jupp Heynckes, mas houve alguém, e esse alguém tem nome e chama-se Eládio Paramés, a dar as credenciais de José Mourinho e a influenciar o presidente do Benfica, que foi convencido pelo Eládio e pelo Álvaro Braga Júnior (secretário-geral da SAD encarnada nessa altura). E em boa hora isso aconteceu, para o Benfica e para o José Mourinho, que teve ali a sua rampa de lançamento", salienta José Manuel Capristano, sem esconder que a sua preferência era outra: "Lutei para que fosse o Toni e ele sabe disso, mas em boa hora foi José Mourinho o treinador. Era vinho de outra cepa. Houve muita resistência, mas quem decidia era o presidente e ainda bem que assim foi", reconhece o antigo dirigente..Eládio faz ainda uma adenda a esses dois nomes. "O Michel Preud"Homme, que era então uma espécie de diretor desportivo, estava doido para trazer um belga amigo dele. Mas eu falei com o Álvaro Braga e disse para ele falar com o Zé, porque para mim era top, inteligentíssimo. O Álvaro Braga falou com o Vale, que acolheu com muito agrado a ideia. Aliás, o Vale já o tinha convidado para adjunto de Jupp Heynckes, mas o Van Gaal aconselhou o Zé a recusar com uma frase que diz tudo: "Vais deixar o Barcelona para seres adjunto do Benfica? Deves estar maluco, se for para principal até eu te vou lá levar." E o ponto da situação era este. O Michel queria mexer os cordéis para meter um belga, o Capristano queria o Toni e o Vale dizia que não queria o Toni. Mas eu gostava de revelar duas figuras centrais muito pouco faladas: o irmão de João Vale e Azevedo e o Dantas da Cunha, o irmão daquele que meteu processos ao Vale e Azevedo, um indivíduo com muito dinheiro e que pressionou também o Vale para escolher o José Mourinho", conta Eládio..O encontro em Telheiras.Tendo em conta o impasse, foi uma iniciativa do atual presidente da SAD do Boavista a desbloquear as coisas. "O Álvaro Braga, que não era defensor do Toni, perguntou-me se eu podia combinar um encontro com o Zé, que estava em Setúbal depois de ter decidido deixar o Barcelona no início dessa temporada para começar uma carreira como técnico principal. Liguei-lhe e disse-lhe: "À noite metes-te no carrinho para nos reunirmos com o Álvaro Braga e com o Michel." E ele dizia que não, que não ia ser adjunto do Toni, porque era essa a notícia que se estava a difundir. E eu para o convencer a reunir tive de abrir um pouco o jogo e garanti-lhe que o Toni não ia ser o treinador. Então encontrámo-nos num apartamento em Telheiras, do Álvaro Braga, e mesmo assim o Zé liga-me, quando vinha na ponte, a ameaçar voltar para trás porque tinha ouvido na rádio que o Toni seria o treinador do Benfica. Mas lá veio e o encontro deu-se. Bem... o Zé começou a falar e o Michel abria a boca, o Álvaro abanava a cabeça e dizia constantemente "pois é, pois é". Depois de uma hora a partir pedra, o Álvaro ligou ao Vale, que pediu para irmos ter com ele que iria resolver o assunto", explica Eládio Paramés..A Avenida da Liberdade seria assim a testemunha do primeiro contrato profissional de José Mourinho como treinador principal. "Houve logo uma empatia imediata entre o Vale o Zé. Xis por mês, e o Zé disse ok. Espero não estar enganado, mas era qualquer coisa como 1500 contos (7500 euros), menos do que recebia no Barcelona como adjunto. Nada que ver com aquilo que o Benfica tinha pago quer ao Souness quer ao Heynckes. Mas ele nem discutiu, queria era trabalhar e estava-se nas tintas para o ordenado. Logo aí fez uma lista do que queria. E de repente colocou-se a questão de quem seria o adjunto e eu atirei para o ar o Mozer. O Vale lembrou-se de que tinha feito campanha contra ele mas ligou-lhe", recorda o ex-diretor de comunicação.."Foi uma pessoa que nos impressionou logo após os primeiros dias", admite José Manuel Capristano, que não vê o presidente da altura como a pessoa a quem Mourinho deve a carreira de exceção que tem feito: "Deve, sobretudo, a Eládio Paramés e, claro, também a João Vale e Azevedo, porque ele é que decidiu. O presidente disse-me que eu ia dar-lhe razão. E ele estava certo.".Após as tumultuosas eleições entre Vale e Azevedo e Manuel Vilarinho, este último foi eleito pelos sócios. Mas a coabitação entre o novo presidente e o treinador foi curta e o divórcio deu-se após a goleada ao então campeão Sporting na Luz, por 3-0. "Consta que o José sai porque pediu mais dinheiro ao Vilarinho e isso não é verdade. O contrato do José era até ao fim do mandato do Vale, mas houve as eleições e o que ele disse ao Vilarinho é que não ia estar a semear para depois outro colher. Por isso pediu ao Vilarinho para lhe prolongar o contrato em mais um ano. Não era uma questão de dinheiro. Mas o Vilarinho não podia aceitar porque tinha o compromisso com o Toni. Quando há a manifestação à porta do estádio, o José disse ao Vilarinho que ia com ele ter com os adeptos desde que ele dissesse a quem estivesse lá fora que ele ia prolongar o contrato mais um ano", revela Paramés..E denuncia dois episódios, já no consulado Vilarinho, para tentar provocar o treinador: "Fizeram coisas inacreditáveis. Numa delas, mudaram o hotel de estágio e ele só se apercebeu quando estava no autocarro. Depois, numa deslocação a Braga, no Bom Jesus, queriam dividir os jogadores por dois hotéis para os dirigentes ficarem mais bem instalados e aí o José disse que ou iam todos para o mesmo hotel ou dormiam no autocarro. Em Campo Maior, um funcionário do Benfica lamentava-se da vitória do próprio Benfica junto de pessoas do Campomaiorense. Assim não podiam mandar "o gajo embora".".Pontapés na porta.Um ano mais tarde, sensivelmente, o Benfica tentou fazer regressar José Mourinho (então no U. Leiria) à Luz, já com a intervenção de Luís Filipe Vieira na qualidade de gestor do futebol. Mas as duas reuniões deram em nada. Na primeira o Benfica não queria Mozer como adjunto, porque tinha sido apoiante de Vale e Azevedo. Depois de os responsáveis encarnados terem acedido à pretensão de Mourinho, colocaram uma condição. "O José tinha de dizer publicamente que não aceitava o Jesualdo [Ferreira]. Ele recusou e disse que tinha de ser o Benfica a resolver isso porque o Jesualdo nunca lhe tinha feito nada de mal", explica Eládio Paramés..É aí que entra em cena Pinto da Costa, com um convite para se reunirem. "Ele tinha na sua posse um papel a conferir-lhe todos os poderes do futebol e o espaço em branco era para o valor dos seus honorários. Ficava apenas a faltar o entendimento com o U. Leiria e o acordo previa que ele entrasse apenas na época seguinte, a menos que o Octávio [Machado] entretanto saísse, como acabou por acontecer. Depois disso houve pessoas a irem a Setúbal atrás dele e a dar pontapés na porta de casa.".A finalizar, Eládio não se desfaz sobre o falado benfiquismo de Mourinho - "não sei, e mesmo que soubesse não o diria" -, mas desfaz a esperança de quem pensa um dia vê-lo regressar outra vez à Luz para acabar o que começou em 2000: "Tenho muitas dúvidas que ele volte a treinar em Portugal a não ser a seleção.".Mas na próxima quarta-feira Mourinho está de volta à casa de partida, 25 títulos depois daquele encontro em Telheiras.