Artem Nych, o russo que fugiu da guerra com uma mochila às costas e ganhou a Volta a Portugal
O russo Artem Nych (Sabgal-Anicolor) conquistou este domingo a 85.ª edição da Volta a Portugal em bicicleta, ao defender a liderança com a vitória no contrarrelógio individual da 10.ª e última etapa, em Viseu.
Artem Nych assegurou a vitória ao terminar os 26,6 quilómetros do 'crono' final com o tempo de 34.36 minutos, menos três segundos do que o companheiro de equipa dinamarquês Julius Johansen, segundo classificado, enquanto o suíço Colin Stüssi (Vorarlberg), vencedor em 2023, gastou mais 30 segundos do que o seu sucessor.
O corredor russo, de 29 anos, assegurou o triunfo final com 01.23 minutos de vantagem sobre Stüssi, segundo na classificação geral, e 2.38 sobre o porto-riquenho Abner González (Efapel), terceiro, enquanto Gonçalo Leaça (Credibom-LA Alumínios-MarcosCar) assegurou o estatuto de melhor português, com o quarto lugar final, a 3.07 de Nych.
"Estou muito feliz, é a maior vitória da minha carreira. Estou muito feliz pela equipa. Perdemos e ganhamos juntos. Todos os ciclistas, 'staff' e diretores fizeram tudo por esta vitória. Muito obrigado a todos", declarou, após conseguir o triunfo.
Artem Nych, o 'gigante' russo que fugiu da guerra com uma mochila às costas, encontrou em Portugal o seu porto de abrigo e 'retribuiu' o 'acolhimento' com um triunfo na Volta a Portugal em bicicleta.
O russo de 29 anos operou uma verdadeira reviravolta na classificação geral da prova 'rainha' do calendário velocipédico nacional nos últimos dias, sabendo esperar pela oportunidade depois de perder tempo na primeira etapa, beneficiou da desistência do líder da Sabgal-Anicolor, o uruguaio Mauricio Moreira, e rematou com autoridade, ao vencer o 'crono' final, depois de já ter erguido os braços na sexta tirada, em Boticas.
Este ano já vinha a 'ameaçar' um resultado assim, com um segundo lugar no Grande Prémio O Jogo seguido da vitória no Grande Prémio Beiras e Serra da Estrela e no GP Abimota - foi somando pódios por onde passou, incluindo no Troféu Joaquim Agostinho, mostrando toda a frieza, capacidade de atacar a liderança e também a leitura de corrida - nesta Volta, chegou a estar a quase quatro minutos da amarela, mas soube esperar, soube vencer em Boticas, 'brilhar' na Senhora da Graça, e confirmar o triunfo defendendo-se no 'crono'.
Em 2023, quando foi contratado, chegou, viu e venceu. Na sua primeira época no pelotão nacional - muito à semelhança do que aconteceu com Mauricio Moreira -, exibiu-se ao mais alto nível, conquistando o GP Beiras e Serra da Estrela, em que 'bisou' em 2024, e foi segundo no Troféu Joaquim Agostinho, somando também top 10 na maioria das provas em que participou.
Campeão russo de fundo em 2021, Nych foi 'resgatado' pela Glassdrive-Q8-Anicolor ao desemprego a que foi condenado com o desaparecimento da Gazprom-RusVelo, devido à invasão da Rússia à Ucrânia, e demonstrou estar à altura da confiança na primeira participação na Volta, embora, na montanha, tenha dado sinais de debilidade, nomeadamente na Senhora da Graça, onde foi 'rebocado' por Frederico Figueiredo, acabando no quarto lugar final.
Essa parceria voltou a repetir-se este ano, na nona etapa, que acabou no alto da Senhora da Graça, desta vez com um resultado muito mais frutífero, dias depois de a equipa ter dado a Volta como perdida quando 'Mauri' abandonou, com problemas físicos.
Para chegar aqui, o portentoso 'gigante' de 1,95 metros e sorriso rasgado fugiu da Rússia com uma mochila às costas, numa viagem com paragem na Bielorrússia, Cazaquistão, Turquia, Itália e, finalmente, Santa Maria da Feira, a cidade onde vive, tal como Moreira.
De relações cortadas com o pai, apoiante de Vladimir Putin e defensor de uma guerra na qual esperava que o filho participasse, Nych aprendeu português em tempo recorde e, hoje, consegue já expressar-se ainda que com algumas limitações -- não esperem dele declarações elaboradas ou análises profundas, apenas o vocabulário essencial.
Vindo da Sibéria, mais concretamente da cidade de Kemerovo, onde nasceu em 21 de março de 1995, cumpriu todo o percurso profissional em equipas russas, iniciando-se na Russian Helicopters (2014) antes de mudar-se para a Gazprom-Rusvelo.
"Se eu vos contasse a história do Artem, ele virava o ciclista do povo português. Pegou numa mochila, sem nada, e veio ter comigo com o contrato assinado. Passámos mesmo muito", contou aos jornalistas o diretor desportivo, Rúben Pereira, depois do 'brilharete' na Senhora da Graça.
Depois de ter dito ser praticamente impossível ganhar a Volta, geriu o esforço do russo, contou com Frederico Figueiredo ao trabalho de novo, sobretudo na decisiva nona etapa, e Nych devolveu à estrutura um triunfo que 'fugiu' em 2023.
"Sinto-me muito feliz por ter feito isto com o Artem, que significa muito para mim. É como se fosse o meu terceiro filho", disse Pereira, que fica visivelmente emocionado sempre que fala do homem de Kemerovo, integrado na equipa apesar do parco português.
Foi na formação 'nacional' -- contam-se pelos dedos das mãos os estrangeiros que por lá passaram -- que Nych conseguiu os melhores resultados, a começar pelo título russo de fundo de sub-23 em 2015, ano em que se estreou a correr em Portugal, ao alinhar na Volta ao Algarve.
Duas vezes 12.º classificado na Volta a França do Futuro, em 2016 e 2017 -- nessa época, sagrou-se vice-campeão nacional de fundo de elites -, alcançou alguns top 10 em provas um pouco por toda a Europa, mas viu a sua carreira condicionada também pelo calendário limitado da Gazprom-Rusvelo.
Ciclicamente convocado para a seleção russa, representou a sua nação nos Jogos Europeus e também no Campeonato da Europa, sem nunca conseguir dar o salto além-fronteiras, já que os seus melhores resultados foram registados nos Nacionais: a juntar ao título de 2021, ainda foi vice-campeão de fundo no ano seguinte e medalha de bronze no 'crono' em 2019.
A extinção da Gazprom-Rusvelo deixou-o desamparado, como tantos dos seus antigos colegas, até que Rúben Pereira o descobriu e lhe ofereceu um contrato -- e uma vida -- em Portugal.
Frio na estrada, Nych é afável fora dela, impressionando pela cortesia e pela boa vontade com que tenta entender o que lhe dizem, num exercício de perseverança, a mesma que hoje o ajudou a ganhar a 85.ª edição da Volta a Portugal.
Maté, Tivani e Guardeño conquistam classificações complementares
O ciclista espanhol Luis Ángel Maté (Euskaltel-Euskadi) venceu a classificação da montanha da 85.ª edição da Volta a Portugal, com o compatriota Jaume Guardeño (Caja Rural-Seguros RGA) a triunfar pelo segundo ano seguido na juventude.
Nas classificações complementares, a tabela dos pontos foi encimada, com autoridade, pelo argentino Nicolás Tivani (Aviludo-Louletano-Loulé Concelho), vencedor da segunda etapa, em Lisboa, e membro habitual de fugas e outras tentativas de pontuar, seja em metas volantes seja nas chegadas.
Tivani sucede ao checo Daniel Babor, que tinha regressado com a Caja Rural-Seguros RGA e acabou por desistir antes do final, tendo sido ainda secundado por um companheiro de equipa e compatriota, Tomás Contte, vencedor da oitava tirada.
Na montanha, Maté mostrou-se ao mais alto nível, surgindo em grande parte das escapadas, e coroou a tentativa com uma vitória em etapa, na chegada à Guarda, dominando esta meta pelo segundo ano seguido.
O veterano de 40 anos encerra a carreira no final do ano e, depois do quinto lugar final em 2023, volta a estar em destaque na Volta deste ano.
Na juventude, ficou confirmada a ascensão de Jaume Guardeño no seio da Caja Rural-Seguros RGA, uma vez que depois de vencer esta classificação em 2023 repetiu a dose este ano, desta feita juntando-lhe um 11.º lugar final na geral.
Quanto à classificação por equipas, esta foi conquistada pela espanhola Euskaltel-Euskadi, uma das quatro em prova do segundo escalão do ciclismo mundial.
Os bascos alicerçaram-se num bloco que colocou dois corredores no top 10, Mikel Bizkarra e Joan Bou, e na boa prestação de Maté.