Vhils: "A arte tem o poder de fazer com que olhemos para algo em que não reparávamos"
Preza o espírito dos lugares (aquilo a que os romanos chamavam o genius locis) e encara a sua arte também como uma abordagem arqueológica do espaço urbano e das peças que o compõem. Alexandre Farto, internacionalmente conhecido como Vhils, voltou a dar que falar esta semana com a apresentação da sua mais recente obra, Tracery, termo inglês que define o “rendilhado” usado na arquitetura gótica, em que aberturas para o exterior, como vitrais e rosáceas, desenham a luz natural num determinado espaço, quase sempre uma catedral. Mas, neste caso, a superfície transformada pelo artista não é uma parede ou um muro, mas um automóvel Mini Cooper clássico. Pela primeira vez, metal em vez de alvenaria. Para a criação do conceito desta instalação artística, Vhils foi a Oxford, em setembro do ano passado, para visitar a fábrica da Mini, onde teve oportunidade de selecionar o modelo que seria a sua “tela”. A escolha recaiu sobre um modelo de 1965.
Não é a primeira vez que Vhils trabalha a memória deste automóvel emblemático. Em 2022, já realizara uma obra efémera para homenagear Sir Alec Issigonis, designer e engenheiro britânico que concebeu o Mini tal como o conhecemos. A obra, com uma dimensão de 30x70m, recorreu a uma técnica inovadora chamada “Grid Job”, que Vhils tem vindo a explorar e em que faz uso de pequenas pedras de brita distribuídas de forma a originar uma composição específica. Ao todo foram usadas 20 toneladas de pedra para dar forma a um retrato de Issigonis, colocado no terraço de um edifício em Lisboa, que só podia ser visto de forma completa e abrangente com um drone.
Nascido no Seixal em 1987, Alexandre Farto é hoje um nome mundial dessa disciplina ainda incompreendida por muitos que é a chamada arte urbana. Já trabalhou em comunidades deprimidas como as favelas do Rio de Janeiro, mas também, está representado nas coleções de grandes instituições como MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa, Contemporary Arts Center (Cincinnati, Estados Unidos), Le Centquatre-Paris (Paris), Centre Pompidou (Paris), CAFA Art Museum (Beijing), ou the Museum of Contemporary Art San Diego (San Diego), entre outros. Já colaborou com os U2 e, no ano passado, a Embaixada de Portugal em Tóquio recebeu um mural do artista que celebra os 480 anos da chegada dos portugueses ao Japão. Também em 2023 fez uma homenagem aos refugiados que chegaram a Lisboa durante a II Guerra Mundial, no Porto de Lisboa
Como define esta obra, Tracery, que é hoje apresentada?
Nasce de uma parceria com a Mini, que nos tem dado apoio em vários projetos, seja o Festival Iminente, seja a Galeria Underdogs ou o programa de arte pública. Nos últimos dois, três anos tenho trabalhado um pouco em projetos colaborativos, explorando a História da marca e todo o seu legado urbano. Este novo projeto parte de um Mini clássico, concebido por Sir Alec Issigonis, de quem há cerca de um ano fizemos o retrato, numa obra efémera. Agora concebemos esta nova peça, que vai ser oferecida ao Museu da marca, em Munique. O que é que fizemos? Perfurámos o carro com cerca de 30 mil pontos e formámos uma composição.
Porquê o Mini?
Porque é um automóvel revolucionário no seu tempo, pela sua simplicidade. A minha prática enquanto artista contemporâneo é profundamente inspirada pelas camadas de história e identidade enraizadas na paisagem urbana. O convite para intervir num dos primeiros modelos deste carro icónico permitiu-me expandir a minha criatividade para uma nova dimensão. É um símbolo de acessibilidade e mobilidade urbana. Através desta intervenção, quero desvendar as camadas deste legado, revelando a essência da sua contribuição para a cidade e os seus habitantes, enquanto crio um diálogo entre passado e presente, tradição e inovação.
Como é trabalhar carroçaria? Oferece algum desafio particular?
Sim, é diferente de trabalhar pedra e tivemos muito cuidado. O carro já tinha sido recuperado (por uma equipa muito experiente na área) mas havia partes da superfície que estavam muito fragilizadas. Foi um desafio grande. A composição que pode ser vista na superfície reflete um pouco sobre o modo como as pessoas interagem e veem a arte que é feita no espaço público. Elas interagem connosco. E nós com elas. A obra chama-se Tracery (rendilhado) porque exigiu um trabalho muito meticuloso para conseguir ter este impacto.
Falou do papel que a intervenção do público desempenha na arte pública. É um contributo importante para si?
Sim, costumo dizer que a minha arte não está finalizada até que alguém a interprete e faça dela a sua própria obra.
Trabalha muitas vezes sobre espaços degradados, para os quais ninguém olhava ou valorizava…
A arte tem esse poder: Fazer com que olhemos para algo em que não reparávamos. Procuro fazer isso com os meus projetos não só no espaço público, mas também na galeria Underdogs. É um projeto que oferecemos à cidade e em que damos condições aos artista para trabalhar. O Festival Iminente é outra vertente, em que a arte pública é posta em relação com a música e a performance.
O Alexandre começou na adolescência, quando a arte pública ainda era uma quase desconhecida em Portugal. Como é que isso aconteceu?
Comecei pelo graffiti, que era o que havia. Nessa época, ainda havia muitos preconceitos em relação à arte no espaço público. Comecei no Seixal, de onde sou natural, e rapidamente percebi que o impacto no espaço público é muito grande, porque estabelece diálogo. Comecei a trabalhar os posters que estão sobrepostos nas paredes das cidades Depois, consegui uma bolsa para estudar em Londres, participei num projeto do Banksy e tornei-me conhecido internacionalmente.
Mas ficou sempre com um pé em Portugal.
É verdade. Voltei em 2010/11. Em 2012, abri a Underdogs como uma plataforma para os artistas que estavam a trabalhar no espaço público e que precisavam de enquadramento e mesmo de agenciamento. Desde então já trabalhámos com mais de 200 artistas. Depois surgiu o Festival Iminente, que alargou o espectro da nossa ação.
Ainda existem preconceitos em relação à arte pública?
Existem, sim. Sempre lidei com isso, temos de superar. E também temos de estar conscientes de que nem tudo o que se faz no espaço público é arte ou quer sê-lo. Eu foco-me no lado positivo. Ao princípio, senti mesmo um certo preconceito por ser da margem sul, mas é a superação desses preconceitos que nos fazem avançar.
Trabalha com a memória dos lugares? É um tema que lhe interessa?
Sim. Muitas vezes vou buscar histórias que estão em camadas nas paredes, um pouco como os arqueólogos vão ao solo. Tento recontextualizá-las e trabalhá-las de forma a humanizá-las e a pô-las a falar connosco. Também gosto da reinvenção do espaço público através do trabalho sobre materiais tradicionais, como os azulejos. Agora, a propósito da minha intervenção na estação de metro de Orly, em Paris, tive umas boas conversas com o Mestre Cargaleiro. Aqui a ideia foi escavar o azulejo e pô-lo em diálogo connosco.
O que é este projeto de Orly?
É um projeto de expansão da linha de metro de Paris, para o qual foram convidados vários artistas internacionais, alguns deles consagrados. Fui convidado para fazer a estação do aeroporto de Orly. Foi um projeto de 4, 5 anos de trabalho, em colaboração com o arquiteto da estação. Os azulejos foram todos produzidos em Portugal, depois são transportados e picados lá.
Como é que correu esse diálogo com Manuel Cargaleiro? Afinal, são de gerações muito diferentes.
Foi bom. Eu sou do Seixal, ele tem uma relação muito forte com o Seixal e Almada. Nunca andei na escola que tem o nome dele (a Manuel Cargaleiro, no Fogueteiro, que é uma referência nas artes) mas desde pequeno vi muitas obras dele, azulejos por todo o lado. Posso mesmo dizer que desde miúdo que as minhas grandes referências de intervenção no espaço público foram esses trabalhos dele e os murais do 25 de Abril, já muito queimados pelos sol. Foi uma honra para mim este diálogo, com o qual aprendi imenso sobre o trabalho em cerâmica e azulejo.
Tem feito muitas intervenções em cidades asiáticas, como Hong Kong ou Xangai. A perceção do seu trabalho é diferente em espaços urbanos com vivências diferentes das nossas?
A vivência das cidades até pode ser diferente, mas o meu trabalho é maioritariamente urbano e há pontos em comum. Lá como cá, a urbe permite ter acesso mais rápido a um conjunto de serviços de saúde, de cultura, saneamento, educação, que é mais difícil encontrar em espaço rural. Mas também há muita coisa que se perde e a questão coloca-se: O que é, afinal, qualidade de vida? Eu cresci quase no último anel de desenvolvimento de Lisboa antes do comboio vir para a margem sul do Tejo. Ainda me lembro de haver campos de terra batida na zona do Casal do Marco. Era mesmo o final da cidade e, em criança, assisti à chegada do desenvolvimento. Lembro-me de termos de andar bastante para chegar à estrada. Assisti ao fim desse mundo e ao boom do urbanismo. Isso teve um impacto enorme em mim. Com estes trabalhos na Ásia, vi isto a acontecer à minha frente. Nos primeiros trabalhos que fiz em Xangai (creio que em 2010) vi aquele processo todo de demolição de bairros antigos para serem substituídos por novas estruturas. Tenho um grande fascínio por todo este processo que destrói mas também cria.
A destruição pode desencadear o processo criativo?
É um ciclo permanente. Nós próprios, enquanto pessoas, estamos sempre a reconstruir-nos.
É o que encontra nesta zona do Barreiro, onde tem o seu atelier?
Sim, é muito estimulante. São áreas que se transformaram muito. Eram muito industrializadas e depois, com a viragem da Economia para os serviços, perderam muita população e tiveram de se reinventar. Há um lado criativo muito forte, que nos levou a vir para aqui há cerca de dez anos. São sítios com muito valor e que têm um forte património humano. Gosto de ir buscar essas memórias que muitas vezes ficam tapadas por novas camadas de construção e planeamento urbano. E é uma pena que se percam.
Falando de memória, os seus avós eram uns grandes entusiastas do seu trabalho.
O meu avô, Manuel Pires era um grande entusiasta. Morreu há dois meses, com a minha avó Júlia. Foram muito importantes na minha formação. Parte da minha família veio de Marvão, no Alentejo, e outra da Beira. Fizeram um enorme esforço para que os filhos viessem estudar para a cidade.