Uma provocação sexual de 132 minutos por Albert Serra

Não é um filme tarado sexual, é somente tarado. Chama-se<em> Liberté</em> e arrisca-se a não causar escândalo pois anda tudo distraído. Está a chegar às salas a nova provocação de Albert Serra, cineasta voyeur que conta ao DN que não entende ainda algumas das suas imagens....
Publicado a
Atualizado a

O mais aclamado dos cineastas espanhóis da nova vaga está de regresso com Liberté, co-produção com a Rosa Filmes, a produtora de Joaquim Sapinho. Uma provocação de 132 minutos que convoca o espírito da libertinagem na Europa pré-Revolução francesa. Viagem em jeito de cerimónia aos prazeres escuros da noite e aos imaginários eróticos do bosque.

Entre a dor e o prazer, Liberté é uma história de encontros na noite e onde se discutem estratégias de implantação do espírito libertino na corte casta de Luís XVI. Nessa reunião com o pensador alemão Conde de Walchen tudo pode acontecer... E o que acontece é aquilo que carnalmente não se mostra em cinema.

Inicialmente, o lugar deste projeto não foi o cinema. Começou no teatro, em Berlim com uma encenação no Volksbuhne, onde tinha como atores nomes como Ingrid Caven e o mítico Helmut Berger. Logo a seguir, instalação filmada chamada Personalien, onde numa sala escura do Museu Reina Sofia, de Madrid, lidávamos com o sexo feio do século XVIII, tão sujo e escuro como no filme. A lógica de instalação permitia uma escolha do participante: aderir à decadência sexual da direita ou da esquerda, sempre com o perigo de esbarrar noutro espetador no escuro radical da sala. Dessas filmagens, claro que estava o pano de fundo do filme. Os tais 132 minutos que vistos num cinema não perdem uma noção de "voyeurismo" com o tempo do teatro.

"No Museu Reina Sofia havia uma diferença: o espetador não conseguia dar conta de todas as ameaças das imagens, tal como quando acontece quando estamos num bosque. Era uma instalação que criava mistério e tensão. No filme, o espetador já é mais sujeito passivo, a interação já não é tão brutal. Mas, em oposição, na versão de cinema, com as personagens e os seus diálogos, vence a parte do projeto político sexual e o conteúdo desagradável da atmosfera fica mais saliente", diz o realizador catalão que em Cannes apresentou esta experiência de ataque ao espectador numa sessão especial, fora de competição. E continua: "o cinema pode permitir uma agressão que me agrada. E pode ainda ter provocação. O meu estilo de cineasta sem ideias dá-se bem com a provocação. Gosto de provocar mas estou a marimbar-me em que direção. O que quero é ser surpreendido".

Depois de Cannes, Liberté continua a provocar reações. Há quem se sinta enojado, há quem se sinta excitado. Certa imprensa em festivais como os de Toronto ou de Roterdão chegou mesmo a escrever que é cinema do "mal". No aniversário do Cinema Trindade, no Porto, houve quem desistisse depois de uma hora mas no final os resistentes aplaudiram.

É seguramente cinema com uma lógica de acontecimento físico. "No filme ainda hoje descubro coisas das quais não me tinha apercebido. Ainda tem muita coisa que não entendo", começa por explicar e vai mais longe: "de forma indireta é um filme que capta e que recria uma atmosfera que tem a ver com o que se passa hoje. Tem pessoas que são deste mundo e isso sentiu-se numa rodagem onde havia uma ausência de hierarquia e em que a própria nudez dos atores estaria em sintonia com as coisas reais. Aliás, a nudez num ator funciona como um sensor da sua própria intimidade. Por isso digo que Liberté é um filme que capta coisas sem nenhuma vontade de o fazer".

Rodado numa mata alentejana e montado em Lisboa, Liberté é a segunda colaboração do cineasta com Joaquim Sapinho. Uma colaboração que se vai manter no próximo projeto, um melodrama. Serra tem dito que sente muito maior afinidade com o cinema português do que com o cinema espanhol. E porque da boca do catalão saem sempre provocações divertidas, é ele quem encoraja o espetador a excitar-se sexualmente com o filme: "Sim, porque não? É do abjecto que por vezes retiramos um boost ao nosso desejo, quanto mais não seja porque a repressão aumenta o desejo. Aqui o espetador pode retirar do mais feio o seu prazer desconhecido".

No final tempo para saber se tem sentido alguma censura no mercado cinematográfico. A resposta é imediata: "Censura zero, mas o que se passa é que as televisões não compram o filme. Sabe, a censura é algo que não me preocupa. O filme existe, ponto final. Não sou eu que vou solucionar todos esses problemas...". Na verdade, Liberté é feito para ser visto num cinema, escuro de preferência... Pasolini já tinha filmado sexo transgressivo e sem regras, mas na câmara de Serra é como se fosse uma experiência religiosa.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt