O mais aclamado dos cineastas espanhóis da nova vaga está de regresso com Liberté, co-produção com a Rosa Filmes, a produtora de Joaquim Sapinho. Uma provocação de 132 minutos que convoca o espírito da libertinagem na Europa pré-Revolução francesa. Viagem em jeito de cerimónia aos prazeres escuros da noite e aos imaginários eróticos do bosque..Entre a dor e o prazer, Liberté é uma história de encontros na noite e onde se discutem estratégias de implantação do espírito libertino na corte casta de Luís XVI. Nessa reunião com o pensador alemão Conde de Walchen tudo pode acontecer... E o que acontece é aquilo que carnalmente não se mostra em cinema..Inicialmente, o lugar deste projeto não foi o cinema. Começou no teatro, em Berlim com uma encenação no Volksbuhne, onde tinha como atores nomes como Ingrid Caven e o mítico Helmut Berger. Logo a seguir, instalação filmada chamada Personalien, onde numa sala escura do Museu Reina Sofia, de Madrid, lidávamos com o sexo feio do século XVIII, tão sujo e escuro como no filme. A lógica de instalação permitia uma escolha do participante: aderir à decadência sexual da direita ou da esquerda, sempre com o perigo de esbarrar noutro espetador no escuro radical da sala. Dessas filmagens, claro que estava o pano de fundo do filme. Os tais 132 minutos que vistos num cinema não perdem uma noção de "voyeurismo" com o tempo do teatro.."No Museu Reina Sofia havia uma diferença: o espetador não conseguia dar conta de todas as ameaças das imagens, tal como quando acontece quando estamos num bosque. Era uma instalação que criava mistério e tensão. No filme, o espetador já é mais sujeito passivo, a interação já não é tão brutal. Mas, em oposição, na versão de cinema, com as personagens e os seus diálogos, vence a parte do projeto político sexual e o conteúdo desagradável da atmosfera fica mais saliente", diz o realizador catalão que em Cannes apresentou esta experiência de ataque ao espectador numa sessão especial, fora de competição. E continua: "o cinema pode permitir uma agressão que me agrada. E pode ainda ter provocação. O meu estilo de cineasta sem ideias dá-se bem com a provocação. Gosto de provocar mas estou a marimbar-me em que direção. O que quero é ser surpreendido"..Depois de Cannes, Liberté continua a provocar reações. Há quem se sinta enojado, há quem se sinta excitado. Certa imprensa em festivais como os de Toronto ou de Roterdão chegou mesmo a escrever que é cinema do "mal". No aniversário do Cinema Trindade, no Porto, houve quem desistisse depois de uma hora mas no final os resistentes aplaudiram..É seguramente cinema com uma lógica de acontecimento físico. "No filme ainda hoje descubro coisas das quais não me tinha apercebido. Ainda tem muita coisa que não entendo", começa por explicar e vai mais longe: "de forma indireta é um filme que capta e que recria uma atmosfera que tem a ver com o que se passa hoje. Tem pessoas que são deste mundo e isso sentiu-se numa rodagem onde havia uma ausência de hierarquia e em que a própria nudez dos atores estaria em sintonia com as coisas reais. Aliás, a nudez num ator funciona como um sensor da sua própria intimidade. Por isso digo que Liberté é um filme que capta coisas sem nenhuma vontade de o fazer"..Rodado numa mata alentejana e montado em Lisboa, Liberté é a segunda colaboração do cineasta com Joaquim Sapinho. Uma colaboração que se vai manter no próximo projeto, um melodrama. Serra tem dito que sente muito maior afinidade com o cinema português do que com o cinema espanhol. E porque da boca do catalão saem sempre provocações divertidas, é ele quem encoraja o espetador a excitar-se sexualmente com o filme: "Sim, porque não? É do abjecto que por vezes retiramos um boost ao nosso desejo, quanto mais não seja porque a repressão aumenta o desejo. Aqui o espetador pode retirar do mais feio o seu prazer desconhecido"..No final tempo para saber se tem sentido alguma censura no mercado cinematográfico. A resposta é imediata: "Censura zero, mas o que se passa é que as televisões não compram o filme. Sabe, a censura é algo que não me preocupa. O filme existe, ponto final. Não sou eu que vou solucionar todos esses problemas...". Na verdade, Liberté é feito para ser visto num cinema, escuro de preferência... Pasolini já tinha filmado sexo transgressivo e sem regras, mas na câmara de Serra é como se fosse uma experiência religiosa.