"De minissaia, loura e gira".Ainda não se chegara às primeiras três horas de conversa quando se percebe que Maria Filomena Mónica decidira revelar pilares importantes do seu percurso de vida e de obra através de quatro afirmações categóricas: a intelectual que na juventude se considerava uma analfabeta, apesar de ter feito o curso de Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa; o ter optado por estudar em Oxford só porque Salazar proibia a Sociologia; a filha que não queria acatar os preceitos da religião católica que orientaram a vida da mãe; bem como a imagem que tem de si, uma rebelde de "minissaia, loura e gira", que assustava os "rapazes" seus contemporâneos. Se tais confissões surgiram cedo, não foi difícil confirmar o quão verdadeiras eram através de um interrogatório cerrado nas duas dezenas de sessões que se sucederam, principalmente por entre esse quarteto de primeiras afirmações existirem certas histórias nunca contadas e silêncios a que decidira pôr um fim..Vamos à ignorância que desde cedo a atormentava: "Cheguei a Oxford com a sensação de que era completamente analfabeta, e até fui um mês antes para me preparar. Como era muito insegura e burra, o meu desejo era saber mais e ser mais culta. Então, o supervisor deu-me um livro clássico de Sociologia, O Suicídio do Émile Durkheim, para me ocupar enquanto o trimestre não começava. E lá repeti que era uma analfabeta e uma estúpida e nada tinha aprendido em Portugal. Respondeu-me que não lhe interessavam as minhas opiniões: «Vá para casa e daqui a uma semana volte com um paper de três ou quatro páginas sobre este livro.» Fiquei tão espantada por me exigir esta leitura em apenas uma semana enquanto a Faculdade de Letras não exigia mais do que um livro por ano. Quando entreguei o trabalho, disse-me, quase de imediato, que não era aquilo que queria: «O que a senhora fez foi resumir o livro; eu sei o que ele diz, o que quero é a sua opinião».".Sobre o doutoramento que lhe mudou a vida diz: "Como o Salazar proibia a Sociologia em Portugal, achei que deveria ser ótimo. Era esse o meu critério: a minha mãe proíbe, deve ser bom. O não-sei-quantos proíbe, deve ser fantástico. É muito característico do meu temperamento e, mesmo que não tenha gostado de Sociologia, como tinha uma bolsa da Gulbenkian senti-me na obrigação de terminar e fazer a tese na área da Educação. A única coisa que me ficou desse doutoramento, após ter lido centenas de livros chatérrimos, foi habituar-me a olhar a sociedade, o que me ajudou na investigação que se seguiu e também quando comecei a escrever em jornais. Os meus colegas achavam que uma pessoa com o doutoramento mais prestigiado do mundo, o D. Phil (Doctor of Philosophy), não deveria sair do meio académico e pôr -se a escrever num jornal. Não lhes liguei até hoje, e dá-me prazer usar uma linguagem que seja acessível a toda a gente. Nada tenho a esconder, nem tenho telhados de vidro. Quando as pessoas dizem que gostaram do meu artigo e que fui muito corajosa, respondo que não, que «digo as coisas como elas são». Muitos estranham que fale de mim, porque os portugueses não estão habituados a que alguém opte pela extroversão, em parte pelo medo que vem de outros tempos, bem como de parecermos ridículos ou moralistas, e evitam a exposição pessoal - que faço com a maior naturalidade, por me ter habituado lá fora a ler textos intimistas em livros e jornais.".Quando explica o afastamento da religião católica, os exemplos que dá são radicais, além de que o seu pendor confessional a impediu de esconder alguns "pecados" que testemunhou: "De um lado, estava a minha mãe, que era uma fanática e membro muito importante na Igreja portuguesa. Teria um desgosto horrível se eu saísse da Igreja, mas aos dezoito anos já tinha decidido que não queria continuar a ser católica. Por outro lado, sempre detestei os católicos progressistas, que pensavam que essa via era a forma fácil para praticarem sexo fora do matrimónio continuando a ser católicos. Isso para mim não fazia sentido, era até hipócrita, e ainda mais me fez dizer «Quero sair da Igreja»." Não cita os católicos progressistas por acaso, e recorda o ano de 1968 e um episódio que a chocou: «Um dia, eu e o Vasco [Pulido Valente] fomos convidados para ir a uma festa em casa dos Vaz da Silva e fiquei horrorizada com o que encontrei, porque não sou de ir a orgias sexuais. Achei que o Alberto e a Helena Vaz da Silva e o João Bénard da Costa estavam a brincar comigo. Não sei se era uma prática comum, porque só lá fui uma vez, mas achei aquilo um nojo. Nunca mais lá quis voltar. Estavam todos nus, a fazer amor uns com os outros. Um estava dentro de uma banheira com uma daquelas coisas triangulares que os bispos põem na cabeça. Era uma espécie de dessacralização da religião, e acho que nem o faziam por gostarem muito de sexo, nem aquilo era terno ou envolvia amor. Creio que teria muito a ver com o Maio de 68, momento político que nunca me entusiasmou, quanto mais não fosse por falta de tempo. Ainda me perguntaram: «Porque não te despes?»; respondi: «Muito obrigada, mas não.» Achei aquilo horrível, ainda por cima eram todos feios, gordos, pelo menos na aparência. Aquela situação deveria ser muito rara, não penso que fosse comum.".No que respeita à forma como seria vista à época, não se fica por meias-palavras: «Eu era uma menina queque, que usava minissaia, loura e muito gira. Os colegas da faculdade tinham imenso medo de mim e, no primeiro ano, só fiquei amiga do José Medeiros Ferreira - porque ele era atrevido. Foi o único rapaz que encontrei que não me olhou como uma boneca bonita, que é tonta porque é loura e usa minissaia. Depois, em Oxford, acho que me olhavam com estranheza por vir de um país tão pobre e ser loura, e pôs -se -me um problema: começo a vestir-me como elas, trapalhonas, ou continuo com a minha minissaia? Convenci-me rapidamente de que não podia abdicar de ser quem era, portanto continuaria a maquilhar-me e a ser exatamente a mesma. O que infundia alguma distância, até porque entre os cem alunos do College não existiriam mais do que quatro mulheres.» Essa questão do aspeto volta a pôr -se poucos anos depois: «Houve uma altura em que pensava que os comunistas tinham sofrido tanto às mãos da PIDE que considerei se não deveria tornar-me militante do Partido Comunista Português. Era a atração por aqueles que se sacrificaram mais, mas rapidamente achei que aparecer no PCP, de minissaia, loura e sendo mulher, não seria muito atraente para eles, e ao primeiro embate - se não me deixassem publicar um artigo no Avante! - iria tudo pelos ares.» Não deixa de recordar o que lhe disse uma amiga que vive nos Estados Unidos: "Ela não percebe como cheguei a diretora do Centro de Investigações Sociais ou o facto de integrar o Senado Universitário devido ao machismo de então. «Não te foi difícil?», perguntava. A minha atitude foi sempre a de atuar como se isso não existisse. De certa maneira não fiz nada, limitei-me a ser eu e a não deixar que me fizessem tropelias lá por ser mulher.".Uma Longa Viagem Com Maria Filomena Mónica.Por João Céu e Silva Editora Contraponto 309 páginas.Entrevista a João Céu e Silva, por Filipe Gil.Maria Filomena Mónica rompeu com aquilo que se esperava das mulheres do seu tempo: belas e recatadas do lar. Qual o seu papel na sociedade portuguesa, de então, anos 1960, e de agora? É um papel inaugural. É a primeira mulher portuguesa que vai para Oxford tirar um Doutoramento em Sociologia. Até 1968 isso nunca tinha acontecido e depois disso também não aconteceu assim tantas vezes. E lá confronta-se com outra realidade académica e considera-se que é ignorante e "analfabeta" - usa essa expressão - e explicando que pouco aprendeu na universidade em Portugal onde tirou Filosofia. E por isso empenha-se a sério no curso de Sociologia. Mas na altura Oxford não era assim tão diferente de Portugal. Entre os 100 alunos e professores do seu curso, só quatro eram mulheres. A sociedade que vai encontrar por lá é diferente mas ao nível do machismo não era assim tão diferente de Portugal. Ao longo de toda a vida, e faz questão de o dizer, foi-se confrontado com situações de menorização do sexo feminino. Cita uma conversa com dois amigos em que um deles lhe diz que já se comporta "como um homenzinho", na altura nem percebeu essa menorização. Sempre achou que os homens olhavam para ela com uma loira, gira, que usava minissaia e que não pensava. E ao longo de toda a vida sempre se confrontou com isso. Na altura em que lançou a sua autobiografia (Bilhete de Identidade, 2005) ficou muito surpreendida porque na sessão de lançamento do livro as filas para os autógrafos eram constituídas principalmente por mulheres de 40, 50 anos que lhe confessaram terem sofrido com o machismo e que a viam como um exemplo. Esse livro foi um escândalo na altura, foi escrito no estilo anglo-saxónico, e nele contou tudo ao invés de relatar futilidades. Falou da sua formação, de como eram os pais em casa, e de como a mãe que queria que ela só se casasse. Mas é através desse livro, e da história de Maria Filomena Mónica que conhecemos a sociedade portuguesa dos anos 1950/1960.. Mencionado a academia, os casos de assédio sexual estão agora a vir a público... A Maria Filomena Mónica rejeita que isso tenha acontecido com ela. Mas a sua justificação é inesperada: diz que nunca foi vítima porque provavelmente estava distraída. Sabia o que os homens pensavam dela, mas não dava valor à situação. Ela considera que uma mulher na Academia tinha que se esforçar o dobro do que os homens. Tenho a certeza que saberia que o olhar masculino era de cobiça, mas era uma caracterização que não existia na altura. Hoje em dia olha para o passado e questiona-se até que ponto um padre no confessionário a fazer perguntas indecorosas ou algumas atitudes de colegas não seriam assédio. Esse papel inaugural de Maria Filomena Mónica continua, hoje em dia, mesmo com as mudanças na sociedade a ter o mesmo tipo de ação? Este livro surge porque nos últimos vinte anos fiz-lhe várias entrevistas. Deve ter sido das pessoas a quem fiz entrevistas de forma mais regular para o Diário de Notícias, isto porque os seus livros são sempre de intervenção e análise histórica. Tem muito trabalho sobre educação e análise social - como nos livros Os Pobres (2016 ) e Os Ricos (2018) -, tem um livro As Visitas ao Poder (1993), que relata o que assistiu nos tribunais, no Parlamento, nas Igrejas, e nos congressos partidários. Sempre teve preocupação de analisar a nossa sociedade. A certa altura achava que a educação era o maior problema do país, mas depois de 2010 mudou de opinião e aponta a justiça como a maior problemática. Justiça à qual os pobres não têm acesso e que os ricos beneficiam bastante atrasando os processos, diz. E dá como exemplos, os casos de José Sócrates e Ricardo Salgado. Ao longo da sua carreira académica nunca deixou de escrever para o leitor comum. E inaugura também a faceta do académico escrever em jornais. Os seus colegas achavam um desprestígio que uma professora doutorada em Oxford escrevesse em jornais e revistas. E isso em 1986 é inaugural, hoje em dia, quase todos os académicos querem publicar em jornais.. A Maria Filomena Mónica sempre teve relações sentimentais com homens fortes. Relembro Vasco Pulido Valente e António Barreto, com quem é casada. E nunca teve medo dessas relações. Um dos capítulos do livro fala disso. Abordamos a relação do Jean Paul Sartre e da Simone de Beauvoir. Perguntei-lhe como Beauvoir a influenciou enquanto feminista. Não se comparando à Simone de Beauvoir, fala da sua relação que durou vários anos com Vasco Pulido Valente, que era uma pessoa muito difícil. Mas refere que o Sartre é o sol e a Beauvoir era o satélite. E como nunca aceitou essa realidade de ser subalterna. Diz que não aprecia esse tipo de relações, como Sartre e Beauvoir, que é tão emblemáticas para muita gente. Aliás, a relação com o Vasco Pulido Valente terminou com a publicação do livro Bilhete de Identidade, onde descreveu a relação que tinham. O Vasco [Pulido Valente] não gostou e nunca mais lhe dirigiu a palavra. E ela nunca voltou atrás. É curioso que a única proibição de temas para esta Longa Viagem foi sobre o Vasco Pulido Valente, de quem não quis falar, apesar de não resistir em voltar ao assunto, mesmo que indiretamente e sem mencionar nomes. Onde é que este livro acrescenta naquilo que já se sabe da vida e do pensamento de Maria Filomena Mónica? Este livro vai mais longe. Consegue isso porque das 22 sessões que fizemos e das 10 entrevista que já lhe tinha feito, conseguimos acrescentar muitas revelações e pensamentos que nunca tinha dito. Como ter pensando suicidar-se a determinada altura da vida, quando o primeiro casamento chegou ao fim e os filhos ficaram em Lisboa e ela em Oxford. E também fala da doença que tem - há oito anos foi diagnosticada com um mieloma no sangue - , uma doença que dá uma esperança de vida de três anos e achou que ia morrer. Mas ao mesmo tempo diz que ficou descansada porque o seu receio maior era ter Alzheimer. O livro tem várias histórias como a do encontro católicos progressistas (ver pré publicação na páginas ao lado) e divulga mais da mulher retratada como a mais insubmissa das intelectuais portuguesas.. filipe.gil@dn.pt