Um verão chamado ternura
Candidato fortíssimo a filme do ano, Alcarràs, de Carla Simón chega às salas depois de ter conquistado o Urso de Ouro em Berlim. Crónica terna sobre a intimidade familiar e a sustentabilidade da agricultura tradicional. E é também uma ode ao verão!
Primeiro, respeita-se, depois entranha-se e a seguir fascina. Pode ser por aqui a entrada a esta segunda longa de Carla Simón (o anterior Verão 1993 passou discretamente nos cinemas portugueses), cineasta catalã que teve a honra de abrir o Curtas de Vila do Conde deste ano. Neste sua nova proposta de neorrealismo, a cineasta, num truque de magia, faz com que o espetador se sinta parte integrante de uma família no último verão que pode fazer colheita de pêssegos de uma terra a mudar de donos. Uma sensação brusca de pertença, coisa tão rara...
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Efetivamente, Alcarràs, filmado com não-atores, de crianças a idosos, é sobre a mudança. O tempo e o mundo em mudança, neste caso o mundo agrícola das terras catalãs de Ponent. O final das tradições, de um ciclo e da importância de um acordo de cavalheiros com um aperto de mão, mas também a chegada de novos tempos nos quais a agricultura de subsistência não tem mais lugar e a praga dos painéis solares ameaça o espaço rural.
Em Alcarràs, pequeno pueblo catalão, todos os verões os Solé trabalham no duro no cultivo de pêssegos. Este verão percebem que será o último depois do proprietário das terras não os querer mais aí e preferir o investimento nos painéis solares. Mas nesta família há quem não se conforme e a apanha é feita com o mesmo fervor de sempre. As crianças, entre brincadeiras de verão, vão vendo este mundo a desmoronar-se, em especial testemunham a tristeza do avô, impotente perante os factos. Os adolescentes, numa transição para a vida adulta, sentem na pele este "último verão", mesmo quando surgem dias de festa. O futuro e o sustento da família será o tema de muitas discussões. Nos irmãos há diferentes maneiras de pensar e agir. Entre o protesto e a reivindicação, há quem prefira juntar-se ao "inimigo". Mas os Solé continuam a amar-se e a nunca desistir. Em todo este processo deparam-se também com questões delicadas: a forma como têm de despedir emigrantes que precisam deste sustento e a decisão de se juntarem ao protesto contra as grandes superfícies que asfixiam os pequenos produtores através de uma política de preços criminosa.
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Entre o prazer de filmar a terra e as gentes, Alcarràs é acima de tudo uma lição de filmar a vida em movimento através de uma câmara disposta a disponibilizar-se para o improviso. Por isso, tudo soa a autêntico, em especial a dinâmica dos não-atores, cuja ira e a intensidade da alegria parecem estar sempre num pedestal de justeza. E não se pense que é uma câmara aos saltos e aos solavancos à procura de coisas. Essas "coisas" acontecem e parecem sempre vibrantes mas há sempre uma delicadeza na composição dos planos, uma espécie de edificação serena do que é captado. Se calhar, uma edificação eminentemente feminina. Essa é a beleza maior de um filme cheio de vida. Uma vida que desponta no ecrã graças ao sorriso de um avô mas também da gargalhada de uma criança. Poderemos talvez chamar a isso um fulgor orgânico que se sustenta igualmente a partir do peso da memória, muitas vezes evocada através de histórias que se contam. Que tudo se integre num naturalismo sério e rigoroso é outro dos trunfos da cineasta catalã, alguém que procura uma luz positiva nesta sua maneira de fazer justiça à beleza desta gente. É claro que é um elogio aos agricultores e a um espírito coletivo catalão. É um respeito enorme a uma arte laboral, a um sentido de comunidade. Seguramente por isso, é palpável que a capa de mensagem social seja urgente. A denúncia que vemos tem um eco universal - todos sabemos que o negócio da fruta atualmente não está do lado dos agricultores pequenos. De alguma maneira, está-se a filmar os últimos dias de algo que vai mesmo desaparecer. Carla Simón faz um "labor de amor" sobre um "labor de amor".
Paralelamente, o filme oferece-nos dois mundos: o mundo das crianças e o mundo dos adultos. É um pequeno milagre que se faz de um gesto observacional que resulta em cheio. O jogo lúdico dos primos adquire uma autenticidade que se cola à pele, como um verdadeiro teletransporte à nossa própria pele. Provavelmente por isso, esse "tag" de cinema de proletariado ou de realismo social torna-se simplista neste caso, mesmo uma assumida posição política de olhar - aí não há nada a fazer... Mas filmar a intimidade de uma família desta maneira não é para qualquer um, muito menos fazer-nos "cheirar" a terra molhada desta maneira. Simón é agora a cineasta espanhola sob mira - felizmente, em Lisboa vai ser exibido novamente Verão 1993.
Em Espanha, o filme foi recebido como ato de resistência de um cinema de autor que tem de ser para o grande público. A própria vitória em Berlim o ajudou mas é significativo assistir a esta boa vontade para um filme que veio dar nova vida ao cinema espanhol pós- Almodóvar. Foi bonito ver a imprensa espanhola fazer bandeira com este Alcarràs. Em breve, da Galiza chega o potente As Bestas, de Rodrigo Sorogoyen, também a abordar os temas da terra e da comunidade agrícola. Algo está a mudar no cinema espanhol. O rastilho terá sido dado pelo seminal O Que Arde, de Oliver Laxe, em 2019.

Ato político e de amor às raízes rurais, Alcarràs parece feito por uma veterana. Carla Simón tem 36 anos..
© D.R.
dnot@dn.pt
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