Um romance sem linguagem policiada

Um romance sem linguagem policiada

A rebelião bem-sucedida de escravos que deu origem à primeira república negra da História, o Haiti de há 200 anos, é o cenário do novo romance de João Pedro Marques.
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Enquanto se celebram os cinquenta anos das independências das antigas colónias portuguesas, o romance Haiti merece uma leitura feita por ex-colonizadores e ex-colonizados para compararem épocas, métodos, vitórias e derrotas sociais e políticas. De autoria de João Pedro Marques, especialista nesta área da História e habitual colunista anti-woke, este seu novo romance vem em boa altura. Não evoca nenhuma data redonda, pois a rebelião que fez Santo Domingo passar a chamar-se Haiti teve início há 230 anos e terminou nove anos depois, em janeiro de 1804 com a independência. É em muito esse o cenário de Haiti e da luta pela sobrevivência de um rico proprietário de plantações e da sua filha, num tempo de revolta dos escravos e de repressão napoleónica, descrito com perícia narrativa e respeito pela História.   

O autor poderia ter optado pelo registo de não-ficção para relatar estes tempos conturbados, em que os incêndios dos canaviais sob a liderança de Toussaint Louverture permitiram percorrer um caminho que levou a que da única insurreição bem-sucedida de escravos surgisse a primeira República Negra da História. Para João Pedro Marques, foi a ficção que venceu em vez do ensaio, até porque já abordara a revolução haitiana em vários livros, uns em edição nacional, outros nos EUA e em Inglaterra: “Desta vez quis fazer um romance e por duas razões; em primeiro lugar, para retratar as relações afetivas num mundo em ebulição e em que nunca se sabe o que irá acontecer no dia seguinte. É nesse contexto de terrível incerteza que se desenvolvem e exprimem os afetos de um pai e de uma filha, do marido e da mulher, do líder dos rebeldes e da sua apaixonada; em segundo lugar, por considerar que através de um romance seria mais fácil e menos árido trazer esta realidade aos leitores. Afinal, boa parte do que está no romance aconteceu de facto.”

A leitura de Haiti não deixa dúvidas sobre este registo sair vitorioso, pois o modo como João Pedro Marques encaixa a ficção no que aconteceu é conseguida. Explica: “Essa é uma das características dos meus romances, a de entrelaçarem sempre personagens reais e factos verdadeiros na narrativa ficcional. É uma situação relativamente intuitiva e decorre do conhecimento que tenho das coisas, como se verifica com certos personagens, como Toussaint, de quem sabia bastante sobre como se comportava, conhecia as cartas que escreveu e a sua fama de mulherengo; por outro lado, ao criar personagens fictícios como Tanguy Jolicoeur ou o capataz português Melchior Salazar, com condutas plausíveis, então tudo acabará por se casar de uma forma muito fácil e natural.”

Haiti é o mais recente romance de João Pedro Marques
Haiti é o mais recente romance de João Pedro Marques

Um dos romances de maior sucesso de João Pedro Marques foi Uma Fazenda em África (2012), no qual uma jovem, Benedita, deixa Pernambuco e recomeça a vida em Moçâmedes. Qual das duas investigações terá sido mais complexa para o autor é a questão que se lhe coloca: “Foram equivalentes, pois ambos os romances se passam em contextos históricos que, como investigador, aprofundei e conheço bem e, como noutros livros, se apoiam muito na documentação da época, como as cartas, os jornais, os discursos parlamentares, as memórias, etc. Acho que esta é matéria imprescindível num romance histórico, de forma a dar autenticidade e trazer realismo para a narrativa.”

De posse de todas estas informações que descrevem uma época, não se pode deixar de perguntar como é a conciliação da linguagem que seria a da altura com a atual “exigência” do politicamente correto. A resposta não demora: “Não conciliei e nunca sinto necessária essa suposta «exigência». Ou seja, nos romances não abdico da minha qualidade de historiador e respeito tanto quanto possível a linguagem, as categorias e normas sociais, os sentimentos comuns e as formas de pensar da época que estou a retratar. Se as pessoas no século XVIII diziam «escravo» é assim que elas se irão exprimir em Haiti e não as ponho a dizer «pessoa escravizada». Nos meus romances não há embelezamentos ou policiamentos da linguagem para satisfazer as indicações ou aspirações do politicamente correto.”

Esta rebelião que inspira o romance Haiti é pouco conhecida dos leitores, situação que o autor confirma: “Dos leitores em geral e não apenas dos portugueses. Conhece-se relativamente bem a Revolução Francesa, mas pouco ou nada o seu impacto nas colónias francesas das Caraíbas.” Esses acontecimentos foram entendidos como um aviso por outros colonizadores, pergunta-se: “Sim e não. Por um lado, eram um sinal de alerta para os perigos da escravidão porque, na sequência da revolução e da longa guerra que se seguiu, 80 mil brancos foram mortos e um número desconhecido, provavelmente maior, de negros.”

Condensando um dos maiores testemunhos de revolta de escravos, o Haiti era o cenário “ideal” para um romance sobre um assunto na ordem do dia mas sempre desvirtuado? João Pedro Marques concorda: “Sim, o tema da revolta haitiana tem sido ultimamente muito falado por motivos políticos ligados às chamadas guerras culturais, mas tem-no sido de forma mitificada ou desvirtuada. Afinal, diz-se que os revoltosos negros aboliram a escravidão ou que a sua luta teria sido orientada por princípios humanistas, mas a realidade foi bem diferente e menos rósea. No romance, quis levar o leitor até uma realidade muito mais complexa e diversificada e mostrar que havia bons e maus de ambos os lados. Efetivamente, houve-os.”

O herói do Haiti livre, Toussaint Louverture, é uma das inspirações do novo romance de João Pedro Marques 
O herói do Haiti livre, Toussaint Louverture, é uma das inspirações do novo romance de João Pedro Marques 

LANÇAMENTOS

A IDADE CONTEMPORÂNEA

Após 252 páginas de debate de ideias e de exposição de contradições sobre o sistema capitalista, o economista francês dá por acabado o seu ensaio, Abrandar ou Morrer – A Economia do Decrescimento, e convida o leitor a dormir uma sesta. O autor pode dar-se ao luxo de brincar com os leitores deste modo, afinal o seu livro, uma adaptação de tese, já vendeu dezenas de milhares de exemplares em França e está a ser traduzido para oito línguas. A portuguesa é uma delas, permitindo conhecer melhor o seu pensamento e proposta: a obsessão pelo crescimento económico. Uma situação que define como um “conto de fadas eterno” que põe em perigo a qualidade de vida dos cidadãos e a saúde dos ecossistemas. Entre as contradições destaca uma interessante: “o crescimento continua mas a pobreza não é eliminada”. Avisa também sobre o absurdo de no futuro as novas gerações questionarem o porquê de se ter organizado toda a sociedade em torno do indicador crescimento e de se ter esquecido que é preciso abrandar para sobreviver. A ler.       

Summary

A IDADE MÉDIA

O prefácio à nova edição desta biografia do Condestável surpreende por só após várias páginas escritas se preocupar com a reinterpretação deste português e antes emparelhar Nuno Álvares Pereira com o regresso ao conceito de Nação e de nacionalismo, com referências a Marx e Engels, ao estudo das potências da Guerra Fria e a outras situações geopolíticas que, diz o autor, se assemelham à conjuntura presente, apesar de distar em seis séculos da revolução de 1383-1385 e do Portugal de Nun’Álvares.

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Isabel da Nóbrega: Uma vida dedicada à escrita e à leitura
Diário de Notícias
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