"Nunca tenho as minhas orelhas no seu lugar. Para me ouvir a mim não preciso delas; assim, distribuo-as onde melhor me servem: atiro uma para cima do balcão de uma loja, outra sobre a mesa dum café ou voam ambas à minha frente, num passeio, entre aqueles dois que discutem”. Assim descreve parte do seu método de trabalho, a escritora, jornalista e tradutora Isabel da Nóbrega, numa das suas primeiras colaborações no vespertino A Capital, título de que foi uma das fundadoras em 1968. Aos 43 anos (nascera em Lisboa, a 26 de Junho de 1925), era já, nesse ano que marca o início da “Primavera” marcelista, uma autora conhecida não apenas na imprensa periódica, onde levava muito a sério a tarefa de fazer divulgação literária, mas também tinha vários livros publicados como Os Anjos e os Homens (romance), 1952; O Filho Pródigo (teatro), 1954; O Amor Difícil (peça de teatro, representada no Teatro Nacional D. Maria II). mas sobretudo o romance Viver com os Outros, publicado originalmente em 1964, que conheceu várias re-edições e o Prémio Camilo Castelo Branco. Sobre ela diria Óscar Lopes (nada mais, nada menos do que o co-autor, com António José Saraiva, de História da Literatura Portuguesa): “É senhora de um equilíbrio estético entre nós invulgar. A narrativa sugere um grande, um inesgotável conhecimento de casos e coisas, coisas vividas, textos religiosos e literários, terminologias científicas, problemas de casuística familiar, conhecimentos colhidos em campos heterogéneos de convivência ou de informação que os jornais não registam, colhidos em viagens, leituras e arte…”E, no entanto, para a maioria dos portugueses Isabel da Nóbrega é um nome desconhecido e para outros apenas uma nota de rodapé na biografia de José Saramago (com quem viveu entre 1970 e 1988), uma suposta musa infeliz a quem ele dedicou várias obras, entre as quais as primeiras edições de Memorial do Convento, para retirar a dedicatória depois de se apaixonar pela jornalista espanhola, Pilar del Rio. Nada poderia ser mais injusto para Isabel, que jamais assumiu o papel de vítima ou se pronunciou publicamente sobre o amor perdido..Nascida em Lisboa numa família com preocupações culturais, Maria Isabel Bastos Gonçalves (Nóbrega era, mais do que um pseudónimo, um antigo apelido de sua família por ela recuperado), cedo se dedicou à escrita. Trabalhou na rádio e assinou milhares de crónicas para diversos jornais e revistas, como A Capital, Diário de Notícias, Diário de Lisboa,Jornal do Fundão, Vida Mundial, Linda e Casa e Decoração. Criou e apresentou os programas O Prazer de Ler e Largo do Pelourinho na RTP e Conversar, Conviver e Clarabóia na RDP -Antena 1. A partir de 1995 assinou, de forma assídua, crónicas na RDP-Antena 2, no programa Allegro Vivace.Mas esta jovem tão intrépida como bela, esteve muito à frente da sociedade portuguesa do seu tempo também no modo como não se resignou na demanda do amor. Casada aos 17 anos, como nesse tempo era esperado duma filha da melhor burguesia, com o médico Joaquim de Abreu Loureiro (com quem teve os seus três filhos, José Eduardo, Pedro e Isabel) divorciou-se, o que era ato de grande coragem no Portugal de Salazar. Viveria depois com o escritor e (muito influente) crítico literário João Gaspar Simões (com quem estaria entre 1954 e 1968) e mais tarde, entre 1970 e 1986, com José Saramago. Mas se procurou a liberdade de corpo e espírito para si, Isabel nunca se cansou de interpelar as outras mulheres. Antes e depois do 25 de Abril, na literatura como nos milhares de textos que publicou na imprensa. Foi uma mulher sofisticada e invulgarmente culta, mas desempenhou um papel pedagógico jamais contaminado pelo paternalismo ou outra forma de condescendência. Tinha uma atenção minuciosa ao universo feminino, tantas vezes revelado apenas por gestos quase impercetíveis, como se pode ver, entre tantos exemplos possíveis, no conto Tempo dos Lilases, incluído no livro Solo para Gravador: “Angelina não tinha lido Proust. Por isso, quando se debruçou da janela do quarto e recebeu de repente o cheiro dos lilases contra a cara, foi logo transportada ao jardim da sua infância, desamparadamente transportada, sem meios para deter o voo imediato; estava-lhe vedado o apoio daquelas considerações possíveis sobre o paralelo de uma madalena embebida no chá e o perfume sedoso dos lilases.”Publicado em 1979 (dedicado a Saramago), Solo para Gravador merece uma vez mais o aplauso da crítica. Na sua coluna no semanário O Jornal, o também escritor Augusto Abelaira dirá sobre este livro: “É em grande parte uma viagem, aqui ou ali suspensa, através da nossa desatenção passada (presente) uma reeducação, plena de inteligência, da nossa mal desperta sensibilidade, um convite para não sermos espectadores distantes, para sentirmos por dentro, de dentro, as pessoas (algumas delas tão distraídas como nós), mas também as coisas.”Um feminismo feito de escuta e atençãoEste convite a não sermos espectadores distantes é a chave para compreender o que fez correr Isabel. Um convite dirigido sobretudo (mas não só) a mulheres e a jovens. Em 1968, quando se começa a publicar o vespertino A Capital, a escritora inicia uma coluna de periodicidade semanal intitulada “Para Ela, em Especial”. Aí evocará pioneiras como a advogada Elina Guimarães ou a médica Cristina Cunha, mas também falará de temas da atualidade. Mais do que falar, interpela. Em A Capital recorda pioneiras como Elina Guimarães ou a médica Cristina Cunha, mas não está na sua natureza limitar-se à evocação. Fala de temas desconfortáveis como a cultura de base das mulheres portuguesas e chega a perguntar “E nós em que ano vivemos?”, referindo-se a um inquérito feito numa revista italiana sobre em que ano viviam as mulheres de vários países com base em critérios como o bem-estar; emancipação social; evolução moral e cultura.No final da década de 1970, já em Democracia, Maria Isabel desdobra-se em atividades. Numa nova revista feminina, de periodicidade mensal - Linda - coordena as secções de divulgação da leitura (o que sempre lhe agradou muito) e o correio dos leitores. No primeiro caso, anunciará em novembro de 1980, o objetivo era levar os leitores e leitoras da revista a aproximarem-se com simpatia...dos livros: “A interessarem-se pelo que está narrado, ou murmurado, ou gritado, nas páginas impressas sem ‘bonecos’, mas onde acabamos por ver nitidamente recortados outros mundos, o mundo, nós, os outros.” Mas adverte: “Nada de novo dirá esta página a quem já tenha uma grande biblioteca, ou uma pequena biblioteca bem organizada. Mas talvez se encontre aqui uma sorridente chamada de atenção dirigida àqueles muitos que confessam não ter livros em casa, e que mal encontram tempo - ou razões - para ler outra coisa além de revistas e jornais.”Mas é no correio, no modo como responde às cartas recebidas, que Isabel se supera. Não exclui ninguém, responde mesmo às missivas carregadas de machismo ostensivo, quando não provocatório, mas dirige-se sobretudo (para usar um termo proustiano, apropriado a ela que tanto gostava de Proust) às jovens raparigas em flor. As que tendo aspirações próprias de uma sociedade que se abria finalmente ao mundo desesperavam ao deparar com a resistência da família. É uma feminista da escuta e da atenção ao outro. Como demonstra esta resposta que dá a uma leitora em março de 1980: “A tua mãe faz toda a lida da casa, o teu pai, técnico de computadores, tem horas muito regulares, vem sempre almoçar e jantar a casa por razões económicas, o que a obriga a ela a bem organizar a lida doméstica, mas não lhe permite apartar das horas do seu quotidiano algumas horas para si própria nem para te acompanhar a ti. E ambos, ela e o pai, sentem-se revoltados com ‘o que vêem por aí’. Logo, o lugar da rapariga é em casa, ao pé da mãe, e pronto. Realmente - já o tenho declarado e escrito, e espero tornar a declará-lo em breve para uma assembleia - com esta teoria se rouba uma fatia da vida das raparigas. Das adolescentes. A preocupação cega do resguardo leva a que se prenda a rapariga como se um ser inerte se tratasse. O convívio com rapazes é nulo. Namoro só um, o que a levar como marido. E assim passa de objeto bem guardado em casa do pai para a casa do marido, onde vai assumir as suas responsabilidades de mulher, de dona de casa e, o mais cedo possível, de mãe. Este é o quadro comum. Ainda. E nisto tudo, onde, quando, em que tempo e espaço se desenrola o seu tempo de rapariga-em-flor? desaparece. É cortada do mapa. Por isso digo que assim se comete um roubo.” A outra carta, que lamenta os entraves ainda colocados à afirmação das mulheres no mundo laboral, responderá (em outubro de 1980): “Esqueces que tudo, desde o princípio, tem condicionado a vida da mulher na sociedade humana. Na sociedade...dos homens. Há épocas em que é mais visível do que noutras o avanço a que leva o esforço das mulheres, de algumas mulheres, são sempre só algumas, são grupos, são raras as que servem de motor de arranque para se ganhar um pouco de campo onde possamos crescer em consciência e sabedoria. (...). Mas repara: temos uma luta pela sobrevivência que custa o dobro da dos homens. O nosso estatuto de seres entendidos (e consentidos!) na sua totalidade é conquistado dia-a-dia, século a século, palmo a palmo.” O volume de correspondência cresce. Aos que a acusam de quebrar a ordem moral estabelecida há séculos, contrapõem-se as mulheres que encontram nela um eco para inquietações e anseios: “Admiro-a pelos artigos que escreve e partilho da posição que toma em relação à mulher, e também à criança”, dirá uma. “Procuro esta página da revista Linda com avidez. Tem para mim sempre algo de novo, de inesperado. Admiro a relação que estabelece com o mundo da infância”, escreverá outra. Isabel nunca se rendeu. Nem no desgosto amoroso nem no esquecimento injusto a que a sua obra foi votada. Morreu no Estoril, a 2 de Setembro de 2021, aos 96 anos. Mais do que a bonita musa de alguém, foi uma pedagoga e uma criadora em nome próprio. Aos netos, a quem devotava uma atenção constante e amorosa, dizia sempre: “Se quiserem saber se morri, toquem um samba. Se o pé não mexer é porque estou mesmo morta.”Em tempo de centenário, a importância da sua obra será lembrada e discutida no colóquio internacional que terá lugar nos amanhã e sextaa-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian e na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Participarão, entre outros, Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Henriques de Jesus, Paula Morão, Fernando Dacosta, Teresa Sousa d’Almeida, Vera San Payo de Lemos, José Manuel dos Santos e o neto mais velho da escritora, Guilherme de Abreu Loureiro. .Valter Hugo Mãe: "A verdade é muito digna. Mas eu trocaria a verdade por um verso"