Um romance inesperado de Amos Tutuola mesmo que com muitos anos de existência
As capas coloridas remetem em muito para as cores que definimos ser as dos continentes em que os livros desta coleção têm origem, mas se a ilustração que apresenta o volume lhes confere uma linha gráfica unitária, quando se começa a ler descobre-se uma diversidade literária surpreendente. E o título mais recente desta coleção é mais uma prova do que ainda se pode descobrir muito na literatura nos tempos atuais: Amos Tutuola e o seu romance O Bebedor de Vinho de Palma. Principalmente, num tempo em que todas as escritoras com o carimbo de nascidas na Nigéria se tornaram famosas e dispõem de máquinas editoriais que as colocam na moda com panfletos em que se beneficiam das crises da consciência ocidental a propósito do seu passado histórico.
É boa ideia ler a nota da tradutora antes de se iniciar a leitura ou o leitor irá, mais uma vez, interrogar-se sobre o estado das traduções e das edições. Raquel Moura informa que a tradução lhe colocou mais problemas do que lhe é habitual. A razão será clara ao tomar-se conhecimento de como Tutuola (1920-1977) foi publicado em 1952, e refere o “uso de uma língua que não a sua e de possuir um conhecimento limitado dessa segunda língua”, o inglês em que escreve. É um inglês macarrónico, repleto de erros, mas que a inclusão de uma página original [p.27] do manuscrito confirma a organização literária do autor.
O que são estes erros? Exemplos: “Quando o pai viu todas as dificuldades queu tava a ter” ou “Encontrei-me cuma cama quera feita de ossos”. Nada que choque o leitor depois de algumas páginas, pelo contrário, remete-o para um outro nível de linguagem que rapidamente irá dominar e tornar-se um dos atrativos do que O Bebedor de Vinho de Palma contém. A tradutora questionou se deveria corrigir o inglês do autor ou recriar-lhe os erros e as idiossincrasias, muitos deles certamente originados pela tradução literal do seu iorubá materno”. Felizmente, não foi corrigido, antes muito bem adaptado e permitindo uma leitura verdadeiramente inesperada.
É também boa ideia ler o prefácio antes de se iniciar a leitura, de autoria do Nobel J.M. Coetzee, que enquadra Tutuola no seu universo: “Uma obra enraizada na tradição oral dos iorubás, e que escreveu diretamente em inglês ou que ele próprio traduziu do iorubá.” Tanto que, acrescenta Coetzee, “foi aclamado pela novidade e pelo carácter distinto da sua voz africana. Os africanos cultos reconheceram imediatamente a língua utilizada, que tanto encantou os leitores britânicos e americanos”.
Coetzee realça ainda o principal dom que se reconhece de imediato em Tutuola: “Tinha talento para contar histórias”. É esse manancial da cultura africana, que tantos problemas levantou ao escritor por ser, alegadamente, uma contrariedade para certa elite da Nigéria que ansiava pela modernidade e não por uma integração em função de uma língua inglesa deficiente, que está bem presente nesta obra. Tão pouco habitual ao primeiro confronto que exige pressa ao leitor para compreender a arte do domínio do contar como é a de Tutuola.
Além da narrativa inesperada propriamente dita de Amos Tutuola, que faz lembrar o clássico Mil e Uma Noites pela sucessão de histórias que se completam umas às outras ao longo de sucessivas páginas, a construção do cenário em que tudo se passa é feita de situações que só um grande conhecedor da mitologia africana seria capaz de harmonizar. Com títulos de capítulos muitas vezes postos fora do lugar, vai-se saltando de tentativa em tentativa do protagonista para reencontrar um vianteiro que continue a recolher o vinho de palma de que precisa para se manter embriagado. Estranhamente, a narrativa refere o estado inicial constante de embriaguez do protagonista, mas este ao percorrer o longo caminho para arranjar um substituto do vianteiro morto, parece bastante lúcido. Mesmo que todo o percurso dos acontecimentos no romance mais pareça fruto da embriaguez do que de um estado consciente, pois o que relata é de um outro mundo.
A invenção que deposita neste livro, fruto da adaptação da mitologia africana/nigeriana, irá tornar-se próxima para alguns leitores de uma cultura como a portuguesa, aqueles que conheceram bem África no século passado, que encontrarão aqui muitos dos mitos com que se confrontaram. Diga-se que a profissão de “vianteiro” nem se encontra nos dicionários portugueses, é necessário o recurso, por exemplo, a um conto da santomense Olinda Beja para encontrar esse significado.
Amos Tutuola
Tinta da China
Coleção de Alberto Manguel/RTP
119 páginas
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Um Épico conseguido
A revista Time definiu O Pacto da Água assim: “É uma fábula que tenta responder à velha questão: porque é que coisas más acontecem a pessoas boas?” Será sem dúvida a melhor síntese de um enorme romance que tem um início de cortar o fôlego no ano 1900 e continua pelo século adentro, percorrendo três gerações de uma família indiana, sobre a qual “paira” uma maldição. A par desta saga, cruza-se a de um médico escocês que é confrontado com os grandes acontecimentos da luta pela independência da Índia. Se o objetivo era dar aos leitores um épico, o escritor conseguiu essa façanha.
Abraham Verghese
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“Ficção" sobre um Refugiado
É difícil separar nesta narrativa o que é real e ficcionado, pois o escritor bósnio abusa dessa liberdade enquanto autor – como se fosse uma espécie de Charles Bukowsky atual - para ilustrar a história de um exilado político que ambiciona ser escritor. Entre o que se retira de verdade deste livro está, principalmente, a vulgarização da literatura, a comercialização do mundo editorial e a destruição do espírito que criou os festivais literários. Um retrato demolidor sobre a arte da escrita, tão impactante como o da degradação das sociedades por onde o protagonista vai viajando.
Velibor Colic
Gradiva
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Poucos autores conseguem como Macintyre recontar a História como se fosse um thriller, com a excecionalidade de encontrar episódios que passaram desconhecidos a outros historiadores. Colditz é o relato sobre uma prisão alemã durante a II Guerra Mundial onde se mantinham detidos os piores inimigos do regime de Hitler, principalmente os heróis. O que se vem a conhecer agora confirma o epíteto do castelo gótico: a mais infame das prisões nazis. Como sempre faz o autor, uma situação que foi real e agora extremamente bem sustentada. Imperdível.
Ben Macintyre
D.Quixote
395 páginas