Um plateau feliz depois do teatro

Alguns dias num plateau que vem do teatro. João Lourenço, o encenador e pai do Teatro Aberto, estreia-se como realizador ao lado do também estreante Nuno Neves num projeto ainda sem nome a partir da peça inglesa Beginning, de David Eldrige. Cinema independente sem pedir licença para ver algures em 2023...

De uma peça de teatro têm nascido filmes, é certo. Não há muito tempo, foi o caso de O Pai, de Florian Zeller, adaptação que até permitiu a Sir Anthony Hopkins obter o seu segundo Óscar. Mas no caso desta produção de cinema do Teatro Aberto o caso é diferente. Na origem há a peça Começar, de David Eldrige, encenada e adaptada por João Lourenço no ano passado no...Teatro Aberto. Era um espetáculo apenas livremente baseado no texto original e tinha uma substancial componente de momentos com vídeo. Curiosamente, ao mesmo tempo, os atores principais, Cleia Almeida e Pedro Laginha, aceitavam ir rodando uma obra de cinema que explorava o que não se via no texto teatral, o durante e o depois do destino das suas personagens, totalmente imaginado por João Lourenço e Vera San Payo Lemos. Ou seja, de uma peça nasce uma longa-metragem inteiramente não subsidiada por ICAs ou outras fontes institucionais. Uma aposta da produtora Within the Groove e do Teatro Aberto.

A versão ou sequela de Começar ainda não tem título e tem a particularidade de ser realizada por um jovem, Nuno Neves, e de ser o primeiro filme de um septuagenário, João Lourenço. Um homem do teatro e outro da imagem juntaram-se para contar a história dos possíveis cenários de um romance dos nossos dias, em que uma mulher bem-sucedida profissionalmente se envolve com um homem humilde e divorciado numa festa. O que fazer depois de uma noite de sexo e de uma atração física insuspeita? Arriscar numa ideia de romance depois dos 40? E como jogar com expectativas de poder quando a mulher tem mais dinheiro e estatuto? Adultos a tentar encontrar segundas oportunidades...Segundas ou terceiras.

Numa das visitas do DN a estas filmagens encontrámos a equipa reduzida no Teatro Aberto, agora a usar os cenários da peça para uma cena para o filme, tudo isto numa altura em janeiro cuja carreira da peça ainda estava ativa em plena Sala Azul. Trata-se de um diálogo do casal após a primeira vez que tem relações sexuais e há uma atenção especial a cada detalhe. De um lado, Nuno Neves muito preciso em detalhes estéticos, do outro, João Lourenço muito entusiasmado a dirigir os atores e a lembrar que têm de ser diferentes na maneira de falar: "Isto é cinema, não é como estar no palco." Pressente-se que é um plateau feliz, onde não se registam atrasos, denota-se um espírito de grupo e há um humor constante de Lourenço, nem que seja para enviar bocas a Paul Thomas Anderson, cineasta que adora mas que em Licorice Pizza o desiludiu. E é o próprio que diz que isto do cinema não foi coisa de última da hora: "É um desejo antigo querer fazer um filme. E muitos anos depois acabei por cair neste! Mas isto não é o cliché de adaptar uma peça, é outra coisa. Já quando adaptámos a peça Começar pusemos cenas novas...Tantas foram que ficámos com muita coisa solta das personagens e, a partir daí, demos uma nova vida às personagens. Este filme não tem que ver com a peça, tem que ver com aquelas duas pessoas que têm uma noite após uma festa. Enfim, é tudo imaginação nossa, como se as personagens saíssem do palco e fossem - antes e depois - para a rua." O cinema depois do teatro.

Noutro dos décors, numa ponta da praia de Paço de Arcos, apanhámos um momento em que a personagem feminina confessa para a câmara alguns dos seus pensamentos. E apanhámos um grande momento de Cleia Almeida, atriz de rosto perene e em registo naturalista, enfrentando o vento, a chuva e o frio de uma manhã de inverno. Os dois realizadores não facilitam a coisa com diversos takes mas Cleia está sempre entusiasmada, ela que no ano passado ficou presa na bolha do novo João Canijo, Mal Viver.

Entretanto, João Lourenço vai dizendo que acredita que este ovni de cinema possa causar algum espanto no meio: "As pessoas do cinema vão pensar: porque é que estes gajos se estão a meter nisto!? Nós apenas queremos mostrar este filme, isto se tiver qualidade para isso, não temos mais aspirações. E acho mesmo que o Pedro Laginha e a Cleia Almeida estão bem." Logo a seguir, um pedido de silêncio de um dos assistentes e um "ação". Na claquete está escrito Começar, precisamente o nome de guerra do projeto.

Cinema Aberto

E enquanto João Lourenço fala carinhosamente para Cleia, dizendo à sua protagonista supostamente cansada e com espetáculo marcado à noite, "tu nunca te cansas!", Nuno Neves está com a sua equipa de imagem e conta que este foi um projeto especial de guerrilha, um investimento do Teatro Aberto e da sua produtora, ele que tem sido o videasta habitual das peças com imagem em movimento do Teatro Aberto: "Não estou a sentir essa coisa do peso de ser a minha primeira longa. Trabalho muito com o Aberto e este é mais um trabalho, ou seja, surgiu de forma muito natural. O João dirige mais os atores e eu encarrego-me mais da parte técnica, mas apesar de ser correalizado, sinto que não deixa de ser um filme dele. Para todos os efeitos, foi do João que veio o início e o final do projeto. Em última análise, quando é para decidir entre os dois, fica sempre o que ele quer, mas pensámos tudo muito a dois."

dnot@dn.pt

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