O que é que Pinóquio tem que continua a justificar a sua revisitação? Dificilmente conseguiríamos resumi-lo num par de linhas. Mas a verdade é que a história de Carlo Collodi já ganhou muitas vidas no grande ecrã, começando pela adaptação da Disney, de 1940, segunda longa-metragem dos estúdios, que será sempre a referência maior no imaginário popular. Podemos dizer isso sim que há um fascínio que perdura entre cineastas e estúdios. Só este ano, para além da versão live-action e CGI que agora se estreia, há uma animação russa a chegar às salas no final do mês (Pinóquio, a História Verdadeira), e a muito aguardada criação stop-motion de Guillermo del Toro, projeto pessoalíssimo que cai na Netflix em dezembro, para acalentar o Natal. Isto sem esquecer que em 2019 tivemos o Pinóquio do italiano Matteo Garrone, com Roberto Benigni na pele de Geppetto - ele próprio que realizara e protagonizara a sua versão em 2002..A pergunta que então persiste é: o que se pode fazer de diverso em tantas abordagens da mesma narrativa? No tocante ao Pinóquio de Robert Zemeckis, que mistura atores de carne e osso com animais minuciosamente concebidos em CGI - neste caso, um autêntico prodígio digital -, a novidade tem que ver com algumas personagens e sequências e, sobretudo, com uma outra ideia de ritmo. Como refere Zemeckis nas notas de produção disponibilizadas à imprensa, "havia um tipo de ritmo nos filmes de há 60 anos diferente do que há agora, mas basicamente mantivemos o espírito, o tom e o tema do primeiro filme.".De facto, é outro tipo de genica que caracteriza, logo na abertura, a entrada em cena do Grilo Falante deste Pinóquio, intrigado com o uso da expressão "Era uma vez..." e o seu próprio papel de narrador. Zemeckis não retira nada da ternura desse início em que damos com o velho Geppetto (comovente Tom Hanks) a falar para a sua marioneta recém-criada, tal como fala com o gato Fígaro e o peixinho dourado Cleo, ambos a sua única companhia num estaminé repleto de relógios de cuco... Estes últimos merecem, desde já, um aparte sobre o aspeto criativo: em homenagem ao universo Disney, o realizador ornamentou vários relógios de cuco com figuras simbólicas dos estúdios, do Pato Donald à Maléfica, do cowboy Woody ao Dumbo, da Branca de Neve ao Simba, passando pelo par famoso de bonecos de um certo filme de Zemeckis (carta fora do baralho que deixamos para o espectador descobrir), numa autorreferência que confere aqui um toque humorístico..Fica claro, desde o primeiro minuto, que a intenção é refrescar o clássico. E para isso faz todo o sentido que a Fada Azul seja interpretada pela atriz e cantora britânica Cynthia Erivo, cuja pele negra estabelece um belo contraste com os lugares comuns dos contos de fadas - é também ela quem dá voz ao icónico When You Wish Upon a Star, a canção oscarizada que se tornou o tema de assinatura dos estúdios; neste remake há ainda novas canções escritas por Alan Silvestri e Glen Ballard. De resto, notam-se pequenas liberdades ao longo da jornada de aprendizagem de Pinóquio que, como sabemos, para se tornar um menino de verdade tem de passar por uma série de provações até "ganhar músculo" nas suas virtudes interiores, e assim também poder aliviar o Grilo Falante da responsabilidade de conselheiro e guardião da sua consciência, enquanto ingénuo boneco de madeira..DestaquedestaqueO Pinóquio de Robert Zemeckis é do mais impressionante que se já viu em termos de avanços do digital, com destaque para os animais falantes.. De entre as várias etapas do percurso de Pinóquio, a da Ilha dos Prazeres (que corresponde àquele lugar onde os meninos são transformados em burros) surge nesta versão como uma das sequências "melhoradas" em função dos novos públicos: retiraram-se os charutos, continua a haver cerveja, mas acrescentou-se o elemento do açúcar a perder de vista, numa espécie de esplendor colorido da gula, para além de alusões ao bullying e à linguagem das redes sociais. Tudo com uma força de espetacularidade sombria e visualmente arrebatadora que comprova a mão segura de Zemeckis, ou não estivéssemos a falar de um dos realizadores mais entusiastas das novas tecnologias, que nos deu a trilogia Regresso ao Futuro, o híbrido Quem Tramou Roger Rabbit? (onde coexistem atores e desenhos animados) e as animações pioneiras Polar Express e Um Conto de Natal. Agora, diz ele que o que aprendeu ao longo dos anos sobre efeitos especiais "foi para fazer este filme.".Parece uma daquelas declarações que apenas ficam bem no contexto promocional, mas, em rigor, o Pinóquio de Zemeckis é do mais impressionante que se já viu em termos de avanços do digital, com destaque para os animais falantes, que conservam a postura antropomórfica própria da animação Disney sem que se sinta qualquer ruído visual na sua textura realista..Já agora, recorde-se que falamos também do realizador que trabalhou com Tom Hanks no referido Polar Express, e antes disso em Forrest Gump e O Náufrago. Uma parceria impossível de ignorar perante a matéria emocional em causa - poucos atores conseguiriam encaixar na figura de Geppetto com a mesma abertura calorosa de Hanks. Ele é, por excelência, a personalidade que nos faz sentir em casa, que não tem medo do "ridículo" da fantasia e alguém capaz de humanizar qualquer detalhe pitoresco de uma personagem saída do traço do desenho animado..Na sua grande operação de versões live-action, a Disney nem sempre tem acertado na mouche. E Pinóquio, sendo um dos casos realmente bem-sucedidos, merecia a honra do grande ecrã, para além da estreia na plataforma de streaming. Trata-se de um verdadeiro trabalho de amor, que tira partido de todos os recursos disponíveis sem trair a memória afetiva da animação original. Digamos que, no processo de releitura e atualização de Robert Zemeckis, o clássico não sai ferido na sua essência. Ainda há magia que não depende de tecnologia de ponta..dnot@dn.pt