Um Diário em que há figuras que se admira pela obra mas que são trastes humanos
As quinhentas páginas de Diário Incontínuo do escritor Mário Cláudio não registam todos os pensamentos que foi anotando desde tenra idade depois de lhe terem oferecido um “daqueles livrinhos de capa em couro lavrado, munido de fechadura e respetiva chave, e destinado a guardar segredos”. Considera que esse era o presente natalício ou de aniversário da praxe, sobretudo conotado com as adolescentes e o seu mundo de alcova. Não foi esse o destino do seu livrinho: “Não sendo menina, mas afirmando-me desde sempre como pouco dado a desportos violentos, a lembrança com que me brindaram constituiria um convite à escrita, talvez não tanto do relato dos namoricos, mas de outras matérias que me atraíam mais.”
E não regista este Diário Incontínuo todos os momentos desde que no dia 1 de janeiro de 1958 o começou a escrever, como avisa no início sobre a existência de uma “triagem” e de este modelo ser o “mecanismo ideal de escamoteamento de factos”, além de, numa espécie de provocação, reproduzir antes de começarem os verbetes uma fotografia de um diário continuado em que estão as datas de 8 e 10 de novembro de 2020 – além de outras reproduções do mesmo género mais à frente. Afinal, esta edição só vai até 10 de setembro de 2019…
A par desses registos que figuram aqui e ali como um verdadeiro trompe-l’oiel, coexiste uma profusão de fotografias que ilustram a vida do escritor e os personagens da literatura com quem se deu, os quadros em que é retratado, a memória dos cães, louças ou árvores, etc. Daí que se deva perguntar a Mário Cláudio com que opinião de si sairão os leitores deste Diário Incontínuo? A resposta não contém equívocos: “Não faço a mínima ideia. Imagino que será uma reação mista, de simpatia e antipatia, e tanto para os mais próximos como para os mais distantes.” Não deixa de fazer um aviso: “Se a enxurrada de atentados à liberdade que se anuncia, e que aliás os políticos mais boçais não se cansam de pôr a circular, conduzir à queima deste livro, que acendam desde já o fósforo. Se me tiverem por decadente, por atentatório aos bons costumes, ou até por redondamente inútil, não hesitem. Estou-me nas tintas.”
Antes de Mário Cláudio não foram assim tantos os escritores que se abalançaram na aventura de publicar um diário. Os que mais se destacaram em qualidade e quantidade neste registo foram o divulgador de si próprio Miguel Torga e o cáustico Vergílio Ferreira. Quem é que deles mais aprecia, questiona-se, e ouve-se o seguinte: “Todos os que me precederam merecem o meu respeito, e em certos casos foi muito o que nos deram. Já percebi, julgo que em definitivo, que devemos ao passado muito mais do que aquilo que supomos, e que por isso se impõe honrá-lo onde ele ficou. Só assim alcançaremos o direito de contemplar o presente com olhos de ver.”
O tom do Diário Incontínuo não é à primeira vista extremamente verrinoso, mas se o leitor ler com atenção encontrará algumas pérolas – bastantes, diga-se – em que o brilho ofusca uma segunda interpretação. É o caso da entrada de 12/1071998: “Regresso da Feira do Livro de Frankfurt, lusitanamente associado pela notícia de atribuição do Prémio Nobel de Literatura, não da Física, por ter conseguido pôr a flutuar uma Jangada de Pedra, a José Saramago: a máquina estraçalhante da compra e venda dos talentos, a nacional-socialista arrogância dos Hunos, batatas, batatas e batatas.”
Deve-se, portanto, perguntar até que ponto Mário Cláudio suavizou certas entradas de modo a não ferir suscetibilidades. O escritor espera que “os melhores dos que se sentirem «feridos» leiam naquilo que lerem a impressão de um instante, sujeito à caução do tempo. Ao longo deste diário, impõe-se dizê-lo, também me «auto-mutilei», mas sem esquecer que o decurso dos anos elidirá a causa de tal atitude”. Justifica, contudo, que “é para isso que os diários servem; para averbamento do passageiro arrufo, da ofensa que se rasurou, ou da ocasional discordância. Situações destas produzem-se até com aqueles que mais amamos, e um diário permite-nos a libertação a longo prazo do ressentimento vulgar ou do corrosivo rancor. A isto acresce, o que talvez se não mostre óbvio para todos, algo que consiste no seguinte: gostar de A ou B não significa gostar necessariamente daquilo que A ou B faz, e gostar daquilo que A ou B faz não terá de coincidir com aquilo que A ou B é”. Conclui: “Há figuras que muito admiro pela obra, mas que considero humanamente trastes, e outras cuja obra não me interessa, mas que estimo por serem humanamente excecionais.”
As opiniões expressas em Diário Incontínuo não são imutáveis e Mário Cláudio confessa isso mesmo: “Creio que vou mudando quase permanentemente.” Nada que não incomode: “Isso acontece a pontos de me desagradar de quanto escrevo, ou de quanto não escrevi. Para quem utiliza um diário, e na minha opinião, não é nas páginas dele que se tecem remorsos ou arrependimentos, mas na vida que se estende muito para além das suas linhas.” Mas também existem situações que gostaria de não ter retirado na versão publicada. Enumera algumas: “A aversão ao sectarismo, a repulsa pela inautenticidade, o amor a meus pais e à sua memória, o afeto aos amigos, a paixão pelos cães.”
A passagem do tempo – 1958-2019 – também permitiu ao escritor descobrir facetas suas enquanto elaborava o Diário. Destaca: “Existem aspetos que provocam em mim o desagrado do que sou, e outras que me ameaçam pelo risco que possa correr. Mas não encontro razão para os calar. A verdade, inclusive a que contende com os nossos temas mais íntimos, e com os perigos a que nos sujeitamos, será sempre muito mais poderosa do que a vergonha que se possa sentir, ou a tentação que se queira esconder.” Entre várias situações, repara-se que tende a menorizar as homenagens que lhe são feitas enquanto escritor, como a da Feira do Livro do Porto e do evento Escritaria. Explica a razão de o fazer neste Diário: “As homenagens, ou qualquer outra forma de reconhecimento do trabalho, recebem-se dentro de nós, e não se exibem ao som das trombetas da vitória. Creio que se trata aqui de uma herança da educação que tive, e de uma resistência a basear num «eu» o que quer que me apeteça, tanto de agradável como de desagradável. Se isto constituir uma espécie de «narcisismo de pernas para o ar», que o seja, consoante o apetite de cada qual!
Quando se chega ao fim de Diário Incontínuo há uma pergunta que se impõe: será um contributo fundamental para uma futura biografia? Mário Cláudio garante que nunca pensou nessa possibilidade durante a escrita. Dá duas razões: “Por um lado, e verificando a nossa literatura, não abunda nela o género biográfico, sobretudo quando o biografado é ele mesmo um escritor. Por outro, e com a exceção de certas áreas como a história, os relatos que se editam agora em catadupa, pomposamente designados por «biografia», quando não se reduzem ao plano da divulgação, constituem simples proposta de entretenimento para escaparate de supermercado. Daí que não tenhamos, exceto quando de autoria estrangeira, a grande biografia dos nossos vultos maiores, um Camões, um Camilo Castelo Branco, um Fernando Pessoa. Não fossem os estrangeiros como Richard Burton ou Wilhelm Storck, ambos de resto do longínquo século XIX, Camões não contaria com mais do que a fugidia impressão frívola, e sem apoio na pesquisa indispensável, do seu percurso riquíssimo de vida e obra. Quanto a Pessoa, e pese embora o digno esforço de João Gaspar Simões, tivemos de esperar décadas e décadas até que assomasse a legítima biografia, de novo de punho lá de fora, o de Richard Zenith.”
Mário Cláudio
D.Quixote
511 páginas
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