Há filmes cujo valor da existência está para além de ostensivos méritos artísticos. São filmes marcados por um gesto profundo que o cinema se limita a revelar, como cartas enviadas para lugar nenhum, que fazem de cada espectador um carteiro secreto, detentor de uma mensagem íntima. Leonora Addio apresenta-se como um desses objetos algo inclassificáveis, sendo ao mesmo tempo perfeitamente claro na sua natureza. Trata-se do primeiro título da carreira de 70 anos do italiano Paolo Taviani em que surge apenas a sua assinatura - o companheiro criativo de toda a vida, o irmão Vittorio Taviani, morreu em 2018, e é a ele que Paolo o dedica. Não apenas no sentido simbólico da dedicatória, mas na expressão total das imagens..Leonora Addio divide-se em duas partes distintas: a primeira (a preto e branco) em torno do percurso insólito das cinzas de Luigi Pirandello; a segunda (a cores) centrada num conto póstumo do autor italiano..Mas não é só o contraste visual entre essas duas partes que traduz aqui o trabalho peculiar de Taviani. Na verdade, são vários os excertos de outros filmes que tecem a malha da história italiana concentrada no filme. Obras de Rossellini (Libertação), Antonioni (A Aventura), Zurlini (Um Verão Violento), Lattuada (O Bandido), passando pelos próprios irmãos Taviani, com Kaos, uma adaptação de cinco contos de Pirandello, de 1984. Leonora Addio incorpora estes fragmentos para fazer a crónica de uma certa Itália, à medida que encena a odisseia dos restos mortais do ilustre dramaturgo, falecido em 1936, dois anos após receber o Prémio Nobel - evento com que o filme começa..Deparamos logo depois com uma cena que lembra o final de 2001: Odisseia no Espaço, onde um moribundo Pirandello é visitado pelos filhos num quarto quase vazio, vendo-os envelhecer num ápice à volta do seu leito. É por momentos surreais como este que se percebe como estamos perante um objeto livre, a fazer vénia ao autor evocado, enquanto vai acenando a Vittorio em toda a sua linguagem de despedida. De resto, a anedota das cinzas é uma pérola melancólica: Pirandello, que tinha deixado expressa a vontade de os seus restos mortais serem levados para a terra natal, na Sicília, só teve esse desejo concretizado ao fim de 15 anos, após uma série de etapas mais ou menos burlescas..Aí, quando a alma do autor já descansa em paz, Taviani ilustra, por fim, um conto escrito pelo próprio, pouco antes de morrer, que ressoa o teatro absurdo da vida e da morte. Chama-se O Prego e fala de um menino italiano imigrante que comete um assassinato em Brooklyn, com um prego... O filme-caixão fica assim suspenso aos olhos do espectador, com a sua doce e áspera tristeza a revestir cada apontamento irónico do percurso. Paolo Taviani, 91 anos, fechou-se poeticamente no seu imaginário de referências, sem responder a mais nada a não ser ao seu impulso afetivo, indissociável do impulso criativo. Não nos admiremos, por isso, com o facto de o título Leonora Addio pertencer a uma história não incluída na versão final - o realizador achou simplesmente que não valia a pena deitá-lo fora. Traquinices autorais..dnot@dn.pt