'Tre Piani'. Nanni Moretti e a sereníssima vertigem do melodrama
Moretti adapta o escritor israelita Eshkol Nevo em Tre Piani, história sobre vizinhos numa Roma burguesa. Filmar a culpa humana numa linguagem nova de melodrama. Um dos casos de consensualidade do festival.
Uma história coral para o maior dos cineastas italianos vivos. Em Tre Piani temos o Nanni Moretti das grandes transcendências existenciais, o Moretti dos dramas íntimos e que é capaz de fazer música de câmara com o seu olhar esmagador. É até agora um dos mais consensuais da competição, por muito que esteja longe do nível de um O Quarto do Filho ou Minha Mãe.
Relacionados
Baseado no romance homónimo de Eshkol Nevo, Tre Piani passa-se num prédio romano de três andares em Roma. O destino de algumas famílias burguesas é posto em causa quando o filho do casal de juízes do terceiro andar atropela à frente da fachada uma mulher. Ao mesmo tempo, a vizinha do segundo andar parte sozinha para o hospital para dar à luz, enquanto que no piso de baixo um casal com a sua pequena filha começa uma crise conjugal quando o marido acaba por se envolver sexualmente com uma jovem menor que é neta dos vizinhos da porta ao lado. As misérias humanas condensadas num microcosmos de Roma e com camadas de melodrama sempre sofisticado. Fala-nos de pais e filhos e da maneira como podemos ou não estar abertos para o próximo. Em boa verdade, a moral da falha humana nunca se compromete numa tese misantropa: cada personagem tem a sua verdade, o seu pecado. E se a culpa come a alma de quem pecou, Moretti prefere dar sempre espaço (nem que seja através do tempo, a narrativa estende uma década a narrativa) às personagens e aos seus dilemas. Fá-lo com uma elegância digna, sem nunca cair num território de histerismo. Nada disso, a verdade neste filme é trabalhada com um pudor de quem tem o peso da vida.
Nesta altura, Moretti dá-se ao luxo de se aproximar de um peso sagrado da condensação das grandes emoções. Pode nem ser com a matriz Bergman mas há algo aqui que aponta para essa sublimação, especialmente quando o ensaio destas teias dramáticas evoca uma reflexão sobre o segredo que temos em nós. No caldeirão do melodrama não há comentário político nem espaço para o inconfundível humor do seu autor. Quando se aborda com este peso o luto da separação (seja pela morte, seja pela ausência), não há espaço para mais nada...
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Para esta homilia sobre as consequências do pecado, Moretti convocou atores de uma classe irrevogável. Ele próprio está lá no meio, mas torna-se muito belo ver a leveza dos registos de Riccardo Scarmacio, Alba Rohrwacher e Margherita Buy. Interpretações que se tornam corpo orgânico de uma coralidade com uma sofisticação novíssima no seu cinema, capaz, de por vezes, ter um estofo de saga. Saga íntima, entenda-se. E por todo o filme percorre uma dor muito sombria, personificada por um corvo negro que chega a esta nova morada de Moretti. Nestes três andares está o perdão e a inclemência do mundo. Pelo meio, nascem bebés, morrem pessoas e há mudanças de casa. A vida segue assim.
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal