Julia Garner numa inquietante aventura australiana
Julia Garner numa inquietante aventura australiana

'The Royal Hotel'. Do pitoresco à violência

'The Royal Hotel' é um filme australiano que pode ser visto nos ecrãs caseiros, confirmando o talento da realizadora Kitty Green, agora encenando a aventura inquietante de duas jovens num cenário pouco acolhedor.
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Eis mais um filme que não passou pelas salas, entrando diretamente nos circuitos caseiros: The Royal Hotel é uma realização da australiana Kitty Green, tendo integrado, o ano passado, a programação dos festivais de San Sebastián e Londres - está disponível, com o título original, no TVCine Top.

A sinopse diz-nos que se trata da odisseia de duas jovens canadianas, em viagem pela Austrália; depois de gastarem todo o seu dinheiro em Sydney, decidem aceitar um emprego no Royal Hotel de uma pequena povoação mineira, no meio do deserto, local especialmente lúgubre, com uma população não muito acolhedora. Dito de outro modo: estavam reunidas as condições para mais um disparate (dito) de terror em que as incautas heroínas vão encontrar uma galeria de personagens ameaçadoras, porventura vindas de outra galáxia…

Nada disso. Aliás, embora tal referência não seja explicitada (a não ser no genérico final), The Royal Hotel  inspira-se em vivências já retratadas em Hotel Coolgardie (2016), de Pete Gleeson. Neste documentário evocava-se a experiência de duas jovens finlandesas que, com a mesma candura, aceitaram um emprego semelhante para descobrirem, à sua própria custa,  que foram contratadas para servir intermináveis quantidades de álcool aos mineiros da região, supostamente “disponíveis” para todas as formas de abuso emocional e sexual.


Conhecíamos o trabalho de Kitty Green através desse filme magnífico que é A Assistente (2019), com a brilhante Julia Garner no papel de uma jovem que começa a trabalhar no escritório de uma produtora de cinema em Nova Iorque, descobrindo que a sua “função” é garantir a boa gestão de todo o tipo de tarefas, exigências e abusos do patrão. Garner regressa como uma das protagonistas de The Royal Hotel, ao lado de Jessica Henwick: as suas composições vão evoluindo através de um bizarro cruzamento de sedução e medo num cenário que, muito cedo, desmente todas as ilusões mais ou menos idílicas.

A partir dos primeiros momentos, torna-se óbvio que o Royal Hotel está longe de ser um local paradisíaco: o eventual pitoresco da paisagem coexiste, afinal, com uma violência endémica. Na sua austeridade, a mise en scène de Kitty Green distingue-se pela criação de um clima em que a mais profunda inquietação nasce de uma lenta e sábia gestão dos tempos narrativos - no limite, o gesto de colocar uma bebida em cima do balcão sob o olhar gélido de um dos mineiros pode equivaler à sensação de uma ameaça visceral.

Estamos perante uma pequena produção australiana capaz de transfigurar um lugar sem fotogenia num espaço de genuíno dramatismo - neste aspeto, a direção fotográfica de Michael Latham revela-se decisiva. Curiosidade a reter: o dono do hotel, ele próprio a vogar entre a organização profissional e o delírio do álcool, é interpretado por Hugo Weaving, o eterno Agente Smith de Matrix.

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