Testamento de angústia sob o rosto de Binoche
Começa ao sol, numa praia com água límpida e morna. Vincent Lindon e Juliette Binoche são um casal em férias, trocam afetos, fazem amor, parecem felizes. Avec Amour et Acharnement, de Claire Denis, propõe algo mais escuro e frio. Trata-se, afinal, de uma outra coisa, uma outra zona na qual o espectador fica em perda com as imagens. Esta história de amor é um triângulo amoroso duro e com um desconforto moral que perturba como há muito não se via no cinema francês.
Em Paris, depois da escapada na praia, está inverno, há covid e a rotina do dia-a-dia deixa de provocar sorrisos. Percebemos que Lindon está desempregado e a contas com um passado recente que incluiu uma pena de prisão. Aos poucos chega também a informação de que o casal está junto há nove anos e que nos subúrbios do Paris ele tem um filho adolescente de uma outra mulher. Trata-se de uma relação pai-filho marcada pela ausência e pelo silêncio.
Enquanto isso, a personagem de Binoche deixa-se mergulhar numa rotina que não a deixa preenchida, mesmo sendo autora de um importante talk show na rádio. A relação de ambos é abalada quando François (Gregoire Colin), o antigo amante dela, volta à cena. Esse misterioso homem tem um emprego para Lindon, mas Binoche sabe que poderá ser perigoso revê-lo. E o momento do reencontro de ambos é fatal - percebem que não podem estar separados e que entre eles há uma atração sexual inevitável...
O que poderia ser um triângulo amoroso numa ótica de amour fou torna-se uma evocação íntima das verdades e mentiras que homens e mulheres contam uns aos outros. Tal como o título internacional proclama, Both Sides of the Blade mostra o conflito de uma mulher que não quer abandonar o companheiro que também ama mas que não resiste a um amor antigo e supostamente eterno. Um conflito que se torna numa tensão trágica para os envolvidos e que é pontuado por uma tristeza pesada e funesta. A meio desta história já estamos infetados pela angústia e pelo desafio ético que tudo desencadeia. Claire Denis não quer explicar nada com psicologia, mas vai fundo nessa ferida de coração que passa pelo casal. Depois, nas lágrimas intensas de Juliette Binoche nasce uma outra camada de dor que passa por aquilo que de mais íntimo tem o desejo. Ficamos perante uma atriz a confrontar uma ideia de trauma sem filtros, mesmo nos planos em que é filmada com a máscara higiénica. É fortíssimo, cria mal-estar e ainda é mais acentuado com a música dos Tindersticks, perfeita melodia para compor esta balada de uma cidade cinzenta e sem esperança.
Mas se Binoche está a um nível altíssimo, o que dizer de Vincent Lindon, vulnerável e contido como nunca. Sem ele este filme nunca teria esta posse de errância. É ele quem traz um prenúncio de mal e de perda... São os tais dois lados da lâmina conforme Stuart Staples canta de mansinho nos créditos finais. A boa, melhor notícia é que está já garantido para estrear em Portugal.
Outra das boas surpresas do cinema português é um dos trunfos da secção Forum, onde os programadores percebem o fôlego de liberdade dos novos cineastas nacionais. A Terra Que Marca, de Raul Domingues, é uma feliz mistura de documentário puro e duro com cinema experimental radical. Um objeto que propõe levar a câmara para cima do trabalho agrícola. E é literalmente para "cima": esta é uma câmara que cava, cultiva e semeia, acompanhando a labuta de um terreno de agricultura de subsistência no Portugal profundo. Não há cá diálogos, música ou voz off. Há apenas um trabalhão em dar forma a um olhar sensorial do trabalho na terra, neste caso num terreno dividido de gerações em gerações em Casal da Quinta. Se quisermos, um anti-National Geographic, apenas exposto ao embate da matéria viva da natureza e do tempo que de lá sai, por entre gestos ancestrais na maneira de utilizar os instrumentos agrícolas. Sem histórias, sem enredos, apenas a narrativa de uma experiência de extremos, algures entre o ciclo das estações do ano e a solidão do homem. No começo, cansa um pouco mas depois entramos naquele processo. E aí ganha dimensão de um documento para registar uma prática que é cada vez mais do passado. Por muito que haja um excesso em Portugal de documentários de jovens deslumbrados em filmar o espaço e as gentes rurais, Raul Domingues encontrou algo muito honesto e seco. A Terra Que Marca merece estrear nas salas e não ficar no confinamento dos festivais rurais.
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