Sufaida veio de Moçambique para contar a história de Vuiazi
Eis a grande coincidência: o seu nome é Sufaida mas, quando era pequena, a família chamava-lhe Vuiazi.
Em Moçambique, herança de tempos coloniais, conta a atriz Sufaida Moyane, as pessoas têm "geralmente um nome tradicional, que é aquele que vem dos antepassados, e depois um nome que está no bilhete de identidade e que é um nome português, oficial". Sufaida era Vuiazi. "Eu sabia que Vuiazi tinha sido esposa de Gungunhana, mas não sabia que ele tinha tido muitas esposas. Só quando cresci é que aprendi isso. Vuiazi foi a esposa que ele mais amou. E Vuiazi sou eu, de verdade", ri-se. Por isso, quando surgiu a oportunidade de participar no espetáculo Netos de Gungunhana, que estreia esta quinta-feira no Teatro São Luiz, em Lisboa, Sufaida percebeu que estava no sítio certo.
Sufaida Moyane tem 27 anos formou-se na Escola de Comunicação e Artes, em Maputo. Começou a trabalhar quando ainda estava a tirar o curso e diz-se afortunada por ter conseguido ter sempre tantos "guigues", que é como se chama aos biscates que um ator vai fazendo para ganhar dinheiro. E, já que estamos a falar de coincidências, aqui fica mais uma: em 2015 e 2016 ela participou, em Moçambique, nas leituras dramatizadas no lançamento dos dois primeiros livros da trilogia de Mia Couto dedicada a Gungunhana - a trilogia que está na base deste espetáculo.
Sufaida nunca tinha saído de Moçambique até, no mês passado, ter feito a longa viagem de avião que a trouxe a Lisboa para começar a ensaiar Netos de Gungunhana. "Como sou recém-formada sou uma caçadora de experiências. E aqui tudo é novo. São pessoas novas, técnicas novas, espaço novo, tudo é novo e isso é muito importante para mim", diz a atriz. No espetáculo não interpreta Vuiazi mas Dabondi, que foi outras das mulheres de Gungunhana, e faz também o papel de Mouzinho de Albuquerque. Mas nos ensaios o papel de Sufaida vai muito mais além, pois ela traz consigo todo um conhecimento sobre a cultura shangana e tem sido também "uma espécie de tradutora", explicando ao resto do elenco como se dizem os diferentes nomes e o significado de muitas expressões.
Netos de Gungunhana é um espetáculo que junta o Teatro O Bando (de Portugal) com o Teatro do Instante (do Brasil) e ainda um grupo de atores moçambicanos (além de Sufaida, Bruno Huca e Rita Couto). A primeira fase do trabalho decorreu em Vale de Barris, Palmela, sob direção do português João Brites. O espetáculo apresenta-se até 11 de novembro no Teatro São Luiz, em Lisboa. Em janeiro de 2019, parte da equipa leva-o para Brasília, onde será remontado pelo Teatro do Instante com direção de Giselle Rodrigues. Um mês depois, Maputo recebe uma nova remontagem, desta vez com direção de Bruno Huca. Partindo do mesmo texto e do trabalho conjunto da mesma equipa, cada espetáculo será diferente.
O ponto de partida para todo o trabalho foram os livros do escritor moçambicano Mia Couto. Mulheres de cinzas, A espada e a zagaia e O bebedor de horizontes são os romances da trilogia intitulada As areias do imperador, dedicada a Gungunhana, que ficou na história como o último monarca do império de Gaza e da dinastia Jamine (1884-1895), preso por Mouzinho de Albuquerque, em 1895, e condenado ao exílio em Angra do Heroísmo,na ilha Terceira, onde morreu em 1906.
"Ele tinha um território enorme, tinha um exército brutal, queria ter uma mulher por cada dia do ano, para simbolicamente dominar o mundo", lembra João Brites. "Era um homem que tinha tanto poder e depois é mal tratado pelos portugueses. Na viagem, ainda pensa que se vai encontrar o rei de Portugal e vai ser tratado como um igual mas, depois, é metido num calabouço e tratado como um bicho. O destino cai-lhe em cima da cabeça. Percebe que é um homem como os outros. No final, estamos reduzidos à nossa ridícula pequenez. E ele vai perdendo a fala." Porém ao encenador não lhe interessava de todo fazer uma reconstituição histórica, mas antes lançar "um olhar, uma perspetiva sobre o mundo de hoje através da abordagem de uma personagem mítica, que foi poderoso, que foi imperador".
Tudo começa no palco com uma conferência internacional que reúne os descendentes de Gungunhana. Vindos dos vários cantos do mundo, com os seus muitos sotaques diferentes, começam a confrontar-se os vários pontos de vista e as várias versões sobre a história deste homem. E, aos poucos, somos transportados para um outro espaço e um outro tempo.
Sempre acompanhando Gungunhana, o foco da história acaba por estar na figura de Imani, filha de chopes, povo do sul de Moçambique que vive tradicionalmente da agricultura, em distritos da província de Inhambane, e que também foi colonizado por Gungunhana, de etnia zulu. Imani tem dois irmãos: um que foi educado em missões católicas portuguesas, e que se diz soldado português, e outro que cumpriu rituais ancestrais de iniciação do povo zulu. Aos 15 anos, Imani apaixona-se por Germando de Melo, um soldado português que tinha sido enviado para África como punição por ter participado na revolta republicana de 31 de janeiro de 1891. Grávida, Imani é deportada para Portugal, em 1896. Esta criança, que aprende muitas línguas e que acaba por se tornar numa "tradutora dividida entre vários mundos, mas que também faz a ponte para as pessoas se compreenderem", funciona, segundo João Brites, como o "ancoradouro" da peça.
Como olhar hoje para esta história? O que fazer com ela? O que tirar dela? João Brites não tem dúvidas de que este é um espetáculo sobre o colonialismo embora nunca - nem no palco nem nos livros - se mencione tal palavra. O colonialismo verdadeiro, o político, mas também o colonialismo através da imposição de uma cultura e de uma língua diferentes. "Quando se perde a língua perde-se a identidade", diz João Brites. E essa reflexão sobre a identidade atravessou todo o trabalho dos atores.
Por um lado, há a questão das línguas e dos sotaques, cada personagem tem o seu sotaque, típico de uma determinada região do Brasil, de Portugal ou de Moçambique, muito marcado, até quase ao ponto em que a comunicação é impossível. Por outro lado, há a questão da cor da pele. Atores brancos fazem personagens negras, atores negros fazem personagens negras e brancas. E, por fim, há ainda mulheres a interpretar personagens masculinas. "Não foi pacífico, tivemos várias discussões sobre isto, havia posições muito diversas", conta o encenador.
O essencial, no pensamento de João Brites, é que o teatro não tem qualquer dever de ser realista ou de imitar a realidade. "Para mim o teatro não representa as ideias, a sua função é ajudar-nos a ter mais ideias. Não vou representar a ideia que tenho de brancos e negros, vou encontrar artisticamente, poeticamente, plasticamente uma forma de criar mais ideias. Representar simbolicamente coisas que fiquem nas pessoas e as ponham a pensar - isso é mais do que tudo o que eu possa dizer", explica. No seu teatro, não pode haver barreiras ao trabalho do ator, sejam barreiras impostas pelo corpo ou pela cabeça. O palco é um espaço de liberdade.
Já Giselle Rodrigues, a encenadora do Teatro do Instante, não esconde porém que esta opção é, no momento atual, "um ato político muito forte". No Brasil, tem havido uma grande polémica em volta dos atores brancos que interpretam personagens negras. "Duvido que quando levarmos o espetáculo para Brasília seja possível fazer isto", admite. "Poder fazê-lo aqui é extraordinário porque nos obriga a torcer o olhar e buscar esse lugar de igualdade, em algum sentido."
Torcer o olhar é uma boa expressão. João Brites fala em "ultrapassar fronteiras". Netos de Gungunhana procura ultrapassar "fronteiras do tempo e do espaço, mas também fronteiras do olhar".
Netos de Gungunhana
Texto: Mia Couto
Dramaturgia: Miguel Jesus
Encenação e cenografia: João Brites
Música: Jorge Salgueiro
Corporalidade: Giselle Rodrigues
Figurinos: Clara Bento
Desenhos de luz: Guilherme Noronha
Interpretação: Alice Stefânia, Bruno Huca, Diego Borges, Fernando Santana, Raul Atalaia, Rita Couto, Sufaida Moyane, Suzana Branco e Té Macedo
Teatro São Luiz, Lisboa
De 25 de outubro a 11 de novembro
Bilhetes: de 12 a 15 euros
Conversa com os artistas: domingo, 28 de outubro, após o espectáculo