Sobre livros de pseudo-escritores
Há três leitores possíveis entre os que começam a ler Máquinas de Ficção, o mais recente livro de Paulo José Miranda: os que sabem ao que vão, os que acreditam no que estão a ler e os que se apercebem de que quase tudo é ficção. Ou seja, o autor reúne uma série de textos que tem publicado no jornal Hoje Macau e que têm a particularidade de serem recensões sobre livros e autores inexistentes, inventando-os de uma forma tão curiosa como inteligente, e deixando o leitor interessado na obra analisada. Ou seja, quem desconhece o estatuto destas “críticas literárias”, o da total ficção, irá à livraria comprar o livro e descobrirá que ele não existe; ou vai à Internet e não encontra qualquer biografia do escritor!
Não é uma situação de agora, como se pode confirmar na badana esquerda: “Paulo José Miranda, o autor de Natureza Morta, que lhe valeu o Prémio José Saramago, inventou toda uma literatura que, talvez por ser inventada, nos parece mais real que a própria realidade.” Além de na Introdução fazer um alerta sobre Dionísio o Aeropagita e o Pseudo-Donísio, autor inventado e escritor de livros nunca vistos e muito comentados.
Pergunta-se a Paulo José Miranda por que razão inventa uma coleção (quase toda) falsa de recensões sobre livros e o escritor esclarece: “Escrever sobre livros que não existem e autores que não existem é um modo de prolongar a leitura de modo criativo, como entendo que toda a leitura deva ser. Este livro é um conjunto de textos de leitura criativa. Ou pode também ser uma espécie de ensaios contíguos, isto é, de curtos ensaios sobre alguns temas atuais e intemporais, tendo um autor ou um livro contíguo à reflexão. Não é escrever e refletir acerca de um livro ou de um autor, mas de escrever e refletir contíguo a um livro ou um autor. Ser contíguo é tocar e ocultar, simultaneamente. Neste caso, autores e livros que não existem.”
Entre as várias reações possíveis ao leitor que a dado momento descobre o esquema literário de Máquinas de Ficção existe uma: estarão os escritores reais a falhar na conceção dos seus livros e estes de que Paulo José Miranda fala serão pistas para o que os autores deveriam estar a escrever? Não é essa a intenção, pois diz que “jamais me ocorreria perspetivar o que outros devem fazer”. Como que para manter a ilusão, de vez em quando Paulo José Miranda nomeia um autor verdadeiro como tema da recensão. É o caso de um livro inexistente de Helder Macedo, A Máquina do Romance. Este disfarce dará credibilidade aos outros textos? O autor considera que a credibilidade advém dos próprios textos e dos mundos que criam: “Refere-se Helder Macedo, mas são inúmeros os nomes verdadeiros que percorrem Máquinas de Ficção: desde Platão, Kierkegaard, Fernando Pessoa, Thomas Bernhard, David Bowie, Iggy Pop e Willy Deville”.
A questão da credibilidade não fica resolvida e acrescenta: “A haver, ela vem da escrita, dos mundos que cria, não da realidade. Até porque suspeito que, tal como se escreve neste texto acerca de um livro de Helder Macedo, «o romance torna tudo o que toca em romance. Quer sejam pessoas, edifícios, países, obras de arte, óperas, filmes, tudo o que o romance evoca passa a ficar parte dele. O universo não tem parte de fora. No universo não há lado de fora e lado de dentro, tudo é lado de dentro. E assim acontece com o romance. O romance não tem lado de fora. Aquilo a que chamamos intertextualidades não passa do modo de ser natural do romance. Tal como no universo, no romance tudo é intertextualidade.”
Entre os vários autores e livros ficcionados neste volume há figuras que mereciam existir, como é o caso de Flora David, uma poeta que deseja que “o mundo seja outro” e escreve de forma autobiográfica. Questiona-se se todos os livros terão o seu autor como protagonista, nem que parcialmente, e a resposta é: “Não no meu caso, parece-me. Embora não possa fugir de mim ou deixar de ser quem sou, mesmo quando escrevo, a escrita, mesmo quando poesia, é um exercício de imaginação. Um exercício de alargar o que desconheço. Aumentar o desconhecido.”
Também a ironia está muito presente nestas recensões, como se percebe no texto Como Encontrei o Amor em 10 Dias, daí que se possa considerar Máquinas de Ficção um bom exemplo deste registo: “A ironia aparece em vários livros meus. De qualquer modo, e embora haja muita ironia neste livro, o meu maior exercício de ironia talvez seja A Doença da Felicidade.”
Transferindo o registo de autor para o de alegado crítico no caso do texto Insularidade, pergunta-se a Paulo José Miranda se seria diferente no que escrevesse quando analisasse uma autora dos Açores que “continua por ser descoberta em Portugal continental”. Considera que “autores desconhecidos pela crítica é o que há mais. Sempre houve”. Dá como exemplo o ter escrito durante uns dois anos textos críticos no Hoje Macau sobre “poetas mais jovens que eu e poucos seriam largamente conhecidos”.
Duas dúvidas ficam para o fim: estamos perante um alter ego de Paulo José Miranda ou aquele que acha ser o verdadeiro e se o leitor gosta de ser enganado? A resposta à primeira dúvida é: “Todos os livros que escrevi são um alter ego, no entanto alguma coisa de verdadeiro também deve haver. Teríamos de apurar primeiro acerca do que fosse a identidade, para depois falarmos do que seria ser outro”; A resposta à segunda é: “Parece-me que há cada vez menos leitores. Pelo menos leitores que dialogam com os textos, que aumentam o próprio livro do escritor. Aumentar, não no sentido de que o livro seja menor ou que necessite de ser aumentado, mas porque a sua leitura enriquece o texto. Aquilo a que antes chamei leitura criativa e que muito me interessa.”
MÁQUINAS DE FICÇÃO
Paulo José Miranda
Editorial Caminho
194 páginas
Outras novidades literárias
ENSINO, UTOPIA E CRISE
O professor de Literatura Portuguesa e ensaísta António Carlos Cortez decidiu meditar sobre o estado da Educação e fê-lo, por exemplo, após corrigir 24 redações e concluir que “o país não tem qualquer futuro”. Porquê? Responde: “Escreve-se extremamente mal, fala-se sem sentido, e o vocabulário da maioria dos estudantes é de uma pobreza confrangedora. (…) Não podemos pactuar com este sistema podre.» Mais à frente, sobre os 12 anos de vida escolar dos alunos, diz que para grande maioria foi uma “ganda seca!” Não se esquece de realçar que se já nem os professores levantam as questões primordiais, a de “Quem sou eu?”, porque haveria o estudante de o fazer? A segunda meditação calha em bom tempo: Camões no Ensino. Constata o estatuto que Jorge de Sena e Harold Bloom deram à obra do poeta e o mal que faz a iliteracia literária que reina por cá e impede a fruição estética de Camões. Segue-se um guia de como fazer, porque este ensaio não é só conversa… A ler.
O FIM DA EDUCAÇÃO
António Carlos Cortez
Guerra & Paz
111 páginas
MÁXIMAS EM QUANTIDADE
Richard Zenith, especialista em Fernando Pessoa, já tinha feito uma recolha de grandes frases do poeta. Onze anos depois, reedita-se a obra e lá vem ela com uma boa advertência: “O risco do livro é conter joias em demasia.” Conselho: “Leia apenas uma página por dia ou abra o livro ao acaso e deixe que o dedo aponte uma frase.” Há vinte novas frases!
COMO VIVER EM 777 FRASES DE PESSOA
Richard Zenith
Quetzal
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