Relato de quando a Terra era maior
Vinte anos após a publicação de Planisfério Pessoal, o livro inicial do viajante Gonçalo Cadilhe regressa em nova edição. Para trás ficam cinco capas diferentes e um planeta que mudou bastante para quem o quer conhecer sem estar sentado no sofá a ler livros do género ou a ver documentários. Após ter percorrido mais de cem mil quilómetros, quatro continentes, três oceanos e 38 países, o planeta não é o mesmo que aquele de 2002, ano em que Cadilhe deu início à sua primeira grande viagem. Como o autor diz, “O Planisfério Pessoal trouxe uma democratização da viagem e da literatura que se ocupa dela, que não tinha a notoriedade nem a procura do público anglo-saxónico em particular e do leitor europeu em geral. Para escrever literatura de viagens é preciso viajar e em Portugal viajava-se muito pouco então. Os livros existentes nas livrarias portuguesas refletiam a atitude elitista e a abordagem cultural dos poucos autores que viajavam; o Planisfério Pessoal era o relato de um jovem de mochila às costas sem dinheiro ou apoios a partilhar a mensagem de que o mundo está disponível à espera dos que sonharam em percorrê-lo.”
Diga-se que sem os meios tecnológicos que então estavam a surgir poderia não ter existido a viagem nem o livro. Gonçalo Cadilhe recorda que foi naquela época que se deu a possibilidade de enviar em “tempo real” o relato e as fotografias para ilustrar o texto: “A tecnologia foi fundamental porque possibilitou o envio uma vez por semana da matéria por email para ser publicada em cada sábado na revista do Expresso. Foi essa possibilidade que fez com que o meu projeto de dar uma volta ao mundo fosse aceite e financiado pelo jornal, pois creio, que nunca se tinha feito nada assim antes e em lado nenhum. Estar a viajar num itinerário épico com um desafio original de não apanhar aviões e ao mesmo tempo estar a publicar durante todas as semanas a progressão da viagem, com texto e fotos, só passou a ser possível no início dos anos 2000, exatamente dois anos antes de ter partido para a volta ao mundo.”
O viajante não nega que o mundo foi ficando cada vez mais pequeno de tão percorrido neste novo milénio e mais fácil de descobrir do que quando fez a sua primeira grande viagem: “O desafio era dar uma volta ao mundo sem nunca entrar num avião e era muito pouca a informação sobre a realidade cultural e a situação dos países que visitava. Hoje, a informação é tanta que viajar ignorante sobre o que está a acontecer nos destinos ou ser apanhado desprevenido sobre o que se pode encontrar só se verifica por capricho do viajante. Não era assim quando escrevi o Planisfério Pessoal, tanto que quando decidi atravessar o Afeganistão, país sobre o qual só possuía a versão do Pentágono de uma pseudo-vitória dos EUA sobre os talibãs e a propagandeada pacificação do território, o que descobri em abril de 2004, já no Afeganistão, era que nunca deveria ter escolhido aquele caminho.”
A escolha do itinerário não se deveu apenas aos interesses de Cadilhe, antes teve muito em conta a logística que lhe permitiria atingir o objetivo: “Os destinos foram em muito condicionados pela disponibilidade dos cargueiros aceitarem a bordo um passageiro. Todo o périplo esteve sujeito a essa situação rara de encontrar uma passagem para a travessia marítima e em que porto era possível o embarque. Tive quatro viagens de cargueiro - uma de Valência para Nova Iorque, a segunda do Panamá para Auckland, a terceira desde um outro porto da Nova Zelândia para a China e a quarta de Jacarta para Bombaim. Da Índia, regressei por terra para Portugal pelo caminho mais curto, mas não o mais seguro (o Afeganistão).”
Os cargueiros tornaram-se o meio de transporte mais estranho que Cadilhe utilizou, apesar de na altura já ser muito difícil arranjar passagens: “Hoje, é cada vez mais difícil viajar de cargueiro devido às regras de segurança internacional cada vez mais restritivas. Eram viagens feitas em monstros do tamanho de três campos de futebol com um motor do tamanho de uma catedral. Tudo a bordo era sobredimensionado e ao mesmo tempo vazio e desumano.” Quando se pergunta sobre o meio de transporte mais estranho, Cadilhe aponta primeiro o do cargueiro, mas rapidamente emenda: “De uma forma mais poética, a resposta correta é outra: o meu próprio caminhar, tão arcaico e tão ineficaz numa volta ao mundo, mas muito gratificante.” Dá um exemplo: “Caminhava de uma forma mais prosaica sempre que cruzava fronteiras, entre os dois postos fronteiriços, o do país que deixava para trás e o do que me preparava para entrar.”
Após as duas décadas da viagem, para Gonçalo Cadilhe viajar sozinho já não é tão desafiador: “Está tudo explicado nas redes sociais, partilhado no Instagram, aconselhado por algum influencer que já revelou e banalizou o destino. Viajar sozinho hoje é seguir acompanhado por milhares de amigos no Facebook, seguidores no Instagram, fãs e trolls que debitam dicas, fazem likes, aplaudem com emojis, etc... É impressionante a banalização da viagem e a pressão do turismo sobre os destinos por causa das redes sociais. No meio de tanto ruído, o único desafio hoje em viajar sozinho é conseguir encontrar-se a si próprio.”
Tal como o transporte era uma dificuldade, também havia a questão do estilo da escrita pretendido para seduzir os leitores. Cadilhe confirma que fez um grande esforço neste sentido: “Se por um lado queria transmitir toda a trepidação e urgência das emoções e dos percalços e das incertezas do dia seguinte, escrevendo a quente, no próprio dia, na primeira pessoa, no tempo presente, e só de memória e sem o apoio de fontes académicas ou dados históricos (a internet estava a dar os primeiros passos, não havia o google); por outro lado, queria que houvesse qualidade literária para o relato se tornar um livro. Creio que encontrei um compromisso entre as duas pulsões, afinal vinte anos depois o livro ainda está a ser reeditado.”
PLANISFÉRIO PESSOAL
Gonçalo Cadilhe
Contraponto
350 páginas
BREVES GRANDES HISTÓRIAS (1)
O livro tem duas epígrafes, sendo uma delas de Nietzsche: “Não há factos, apenas interpretações.” É esse o tom dado por José Eduardo Agualusa para o seu mais recente conjunto de contos, que se segue ao excelente romance Mestre dos Batuques, e que reúne páginas que vão do delirante ao extremamente sério, atravessando histórias inesperadas e que só a fazer fé no autor se acreditam ser possíveis. O Vampiro de Berlim é um destes casos, um entre as dezenas de textos destes outros contos para o recomeço do mundo…
QUERO SER OS TEUS DOMINGOS
José Eduardo Agualusa
Quetzal
228 páginas
BREVES GRANDES HISTÓRIAS (2)
A editora Penguin começou a editar a versão portuguesa de uma coleção em tudo pequena, tamanho, preço e número de páginas, à exceção dos autores dos contos que assinam cada volume da Little Black Classics. O primeiro é O Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa, o segundo As Filhas do Falecido Coronel, o terceiro Os Diários de Adão e Eva e o quarto Uma Sociedade de Virginia Woolf.
UMA SOCIEDADE
Virginia Woolf
Penguin Clássicos
52 páginas