Eis um filme realmente excecional: revelado no Festival de Veneza de 2024, Queer, do italiano Luca Guadagnino, está a chegar às salas portuguesas (a partir de quinta-feira). Devemos, aliás, começar por tomar à letra a sua excecionalidade: num tempo de proliferação de espetáculos “ligeiros” para um público cada vez mais seguidista, desinformado e infantilizado, Queer é mesmo uma exceção, capaz de lidar com as convulsões do romance do americano William S. Burroughs (1914-1997) em que se inspira para construir uma narrativa genuinamente adulta — e para adultos.Daí que devamos prestar a devida atenção ao modo como, no genérico de abertura, Guadagnino refere a sua inspiração. Queer não surge como um filme “baseado no romance de William S. Burroughs”, mas sim “baseado no romance homónimo de William S. Burroughs”. Mera questão de fraseado? Nada disso. Guadagnino distancia-se da utilização corrente da palavra queer como bandeira de qualquer militância gay e, nessa medida, de defesa do direito à diferença dos homossexuais.Não que tudo isso lhe seja indiferente. Bem pelo contrário: Queer é, por certo, um dos filmes mais belos, e também mais complexos, que já se fizeram sobre uma personagem homossexual. Acontece que, além de Burroughs nunca se ter afirmado como militante do que quer que fosse, não faria sentido instrumentalizá-lo e diluí-lo nas convulsões ideológicas e mediáticas do século XXI, já que o “romance homónimo” foi escrito no começo da década de 1950, precisamente a época em que decorre a sua ação, embora fosse necessário esperar por 1985 para existir uma edição válida. . Realismo e artifícioGuadagnino quis mesmo reencontrar alguma da sensibilidade visual e narrativa daquela época, e não apenas através dos tradicionais elementos de “reconstituição”. A quase totalidade das filmagens decorreu nos velhos estúdios da Cinecittà, em Roma, apostando em modelos de encenação capazes de reencontrar um peculiar misto de realismo (nos pormenores) e artifício (na teatralidade da encenação). Em jogo está a redescoberta da vibração carnal de um cinema que os efeitos especiais da Marvel & Cª fizeram esquecer aos espectadors do presente — daí a importância da prodigiosa direção fotográfica de Queer, assinada pelo tailandês Sayombhu Mukdeeprom, colaborador regular de Guadagnino, também responsável, por exemplo, pelas imagens de As Mil e uma Noites (2015), de Miguel Gomes.Entenda-se: não estamos perante uma banal imitação formalista. Guadagnino procura uma sensualidade das matérias — a começar pelos corpos humanos — que a digitalização compulsiva do nosso mundo tende a anular. Numa entrevista dada ao site IndieWire (8 dez. 2024), Guadagnino resume assim o projeto: “Concebemos o filme, não como um drama de época, mas sim uma visualização da imaginação de William S. Burroughs.” Nessa medida, o cinema consegue "jogar com o espaço como um espelho, uma caixa de ressonância e uma tela que nos permite sentir melhor o poder de uma relação.” . Que relação é essa? William Lee, a personagem central interpretada pelo genial Daniel Craig (distante, escusado será sublinhá-lo, do seu trabalho, também invulgarmente subtil, como James Bond), ecoa muitas atribulações da existência do próprio Burroughs, da pulsão homossexual até à dependência de drogas pesadas. Aliás, a paixão de Lee pelo jovem Eugene Allerton (Drew Starkey) desemboca mesmo num cenário de pesadelo em que Lee mata Eugene quando, com uma pistola, tenta acertar num copo equilibrado na sua cabeça — a cena evoca o acidente trágico em que, sob o efeito de várias drogas, Burroughs matou a sua mulher Joan Vollmer, em 1951, na Cidade do México, vindo a ser condenado com dois anos de pena suspensa.Na apresentação da edição de 1985, Burroughs é mesmo levado à “conclusão chocante de que não teria sido escritor sem a morte de Joan.” Essa morte colocou-o em contacto com “o espírito do Mal”, levando-o a uma estratégia de “resistência” que não lhe deixou outra escolha que não fosse o ato de “escrever”, de se “libertar através da escrita.” Na introdução à edição do 25º aniversário do romance, em 2010, o académico britânico Oliver Harris fala mesmo de um “autorretrato” em que Burroughs se exprime através do “ódio por si mesmo, assombrado tanto pela recordação da morte como pelo masoquismo do desejo.”A fusão dos corposSeria, por isso, simplista, porventura moralista, reduzir a paixão de Lee por Eugene a uma parábola contemporânea sobre o amor homossexual como “bandeira” do que quer que seja. Nos cenários marginais da Cidade do México (na mesma época em que ocorreu a morte de Joan Vollmer), o que Lee vive é a solidão radical de uma pulsão que o faz habitar o desejo interminável de se fundir com o corpo e o espírito de Eugene. Aliás, a ideia de fusão adquire formas visceralmente cinematográficas, já que Guadagnino recupera algo que, há muito tempo, não víamos de forma tão elaborada, e também tão delicada, num ecrã de cinema. A saber: a sobreposição de imagens (double exposure no vocabulário anglo-saxónico), por vezes acompanhada de algumas formas de distorção, como matéria de figuração da impossível fusão dos corpos.Nesta perspetiva, Queer pode suscitar uma aproximação simbólica de O Amor Louco, de André Breton (1896-1966), publicado em 1937. Seja como for, o eventual rótulo de “surrealista” é escasso para situar a herança de Burroughs, afinal indissociável dos tempos e das obras da Beat Generation e do seu caldeirão de experimentação literária e protesto político, exemplarmente consagrado nos escritos de Jack Kerouac (1922-1969) e Allen Ginsberg (1926-1997). Na sua longa revisitação da génese da escrita de Burroughs, Oliver Harris recorda mesmo o papel decisivo de Kerouac e Ginsberg no acompanhamento de Burroughs na fase final de escrita do romance, até porque “escusado será dizer que a década de 1950 era um período perigoso para a publicação de um romance intitulado Queer.”Ser ou não ser queer surge, assim, como uma questão fantasmática que assombra a personagem de Lee, tal como descrita por Burroughs e filmada por Guadagnino. Na cena de abertura, vemo-lo mesmo a olhar para um jovem algo assustado por se descobrir “objeto” de um desejo que não consegue decifrar — num misto de curiosidade e sofrimento, Lee abre o filme dizendo-lhe: “Tu não és queer...”Importa, por isso, não cometer o pecado de recobrir o labor de Guadagnino com o rótulo de uma militância mercantil para venda em rituais mediáticos dos mais medíocres talk shows. A sua aproximação do universo de Burroughs decorre de uma agilidade narrativa que não se submete a modas panfletárias. Nem sequer a calendários lineares — para nos ficarmos pelo início de Queer, lembremos que no respetivo genérico escutamos a maravilhosa interpretação de Sinéad O’Connor da canção All Apologies, cujo original pertence ao álbum final dos Nirvana, In Utero, lançado em 1993 (a versão de O’Connor surgiu um ano mais tarde, no álbum Universal Mother).No limite, aquilo que Guadagnino encena é a trágica insensatez do amor como demanda (de algum outro, palpável e desconhecido). De tal modo que Lee vive num estado de permanente revolta, tecida da mais cruel angústia, contra aquilo que Burroughs designa como o “tribunal do real” — como ele escreve, “o tribunal do real recusou o seu apelo de misericórdia”.Sexo e amorO capítulo final de tudo isto — a procura do “yagé”, a droga que Lee (e Burroughs) acreditava existir como uma redenção milagrosa, algures nas florestas da América do Sul — transfigura o filme numa parábola da selva que evoca, não sem uma calculada ironia, algum cinema de aventuras de Série B (da produção dos anos 50, precisamente).No epílogo, deparamos com a transfiguração física que se adivinha desde o primeiro momento: Lee surge como “duplo” do próprio Burroughs, não por acaso evocando a imagem do escritor, num pequeno papel, no filme Drugstore Cowboy (1989), de Gus Van Sant. O cruzamento simbólico de tudo isto pode ainda remeter-nos para outra notável adaptação de Burroughs — Naked Lunch/O Festim Nu (1991), de David Cronenberg — em que a figura de Peter Weller, numa outra personagem de nome Lee (no fundo, a mesma), surge tratada a partir da pose e dos retratos do escritor. Pormenor nada secundário: tanto Cronenberg como Guadagnino tratam a clássica máquina de escrever como peça orgânica da intimidade de Lee.Tal como em Chama-me pelo Teu Nome (2017), o filme que conferiu a Guadagnino uma inusitada projeção internacional, Queer é menos sobre a violência emocional que a entrega sexual pode convocar e mais sobre a descarnada solidão que nela se revela. Em boa verdade, a exaltação das solidões partilhadas de Lee e Eugene arrasta o reconhecimento da irredutibilidade de cada corpo, muito para lá do “rótulo” sexual que a cultura dominante lhes possa colar. Citando alguém que foi para ele uma inspiração, Lee diz a Eugene: “Aprendi que o meu o dever era viver e carregar orgulhosamente o meu fardo, para que todos me vissem a vencer a ignorância, o preconceito e o ódio com conhecimento, sinceridade e amor.” . Luca Guadagnino x 3EU SOU O AMOR (2009)É um dos filmes em que Guadagnino filmou essa atriz inclassificável que é Tilda Swinton, neste caso interpretando a mãe de uma família riquíssima a viver uma crise existencial que desemboca numa inesperada vertigem amorosa — o título provém da ária La Mamma Morta, da ópera Andrea Chénier (1896), de Umberto Giordano (na voz de Maria Callas). .SUSPIRIA (2018)Objeto algo marginal na filmografia de Guadagnino, eis uma fascinante adaptação do título homónimo de Dario Argento, datado de 1977, referência lendária do cinema de terror italiano (giallo). A agilidade criativa do autor revela-se através da capacidade de cruzar a herança cinéfila com as singularidades da admirável banda sonora original, composta por Thom Yorke. .WE ARE WHO WE ARE (2020)Guadagnino a experimentar o universo das minisséries (oito episódios, com chancela da HBO), tendo como ponto de partida uma ideia do escritor italiano Paolo Giordano. No cenário inesperado de uma base militar americana (fictícia) em território italiano, deparamos com o retrato contundente de dois adolescentes a viverem a solidão de uma geração à deriva. .'Um Silêncio'. Como se fabrica o ‘suspense’?.'De Hilde, Com Amor'. Uma história de amor assombrada pelo nazismo