Não é a protagonista de Emilia Pérez – a história de uma mudança de sexo que corresponde a uma mudança de vida –, mas não deixa de ser um corpo ansioso por se libertar de amarras. No filme, ela aparece pela primeira vez de noite, como esposa do líder de um cartel de droga, mãe de duas crianças, e reaparece cinco anos depois da transição de género do marido, sem o reconhecer, e desejosa de se entregar ao chamamento carnal noturno, essa “música” que no filme de Jacques Audiard é sobretudo uma questão de afirmação feminina. Ela é Selena Gomez, ou melhor, Jessi, alguém que não tem pruridos em verbalizar o apetite ardente da sua vulva ou mostrar os peitos nus aos faróis dianteiros do carro do amante. Alguém que vive a vida em pequenos momentos de evasão, seja no karaoke ou num número musical espontâneo ao saltar da cama. Alguém capaz de ser o gatilho de uma violência tardia, que se julgava ultrapassada. .Tudo isto é Emilia Pérez e o universo de Jessi, bela loura oxigenada, noturna e sexual. Uma personagem muito distante daquela outra Selena diurna que conhecemos de Homicídios ao Domicílio (no Disney+), a série em que interpreta Mabel Mora, o jovem elemento de um trio patusco que resolve casos de assassinatos num complexo de apartamentos de Manhattan. E é simplesmente fascinante perceber como, no trajeto de Gomez, estas duas versões tendem a coexistir sem estranhezas: depois de se ver a sua pose afogueada em Emilia Pérez poder-se-á olhar melhor para as profundezas da millennial que nesse Only Murders in the Building, ao lado dos velhos Steve Martin e Martin Short, resolve crimes em tom de conforto enquanto se debate com as inquietações do futuro. .Do fenómeno adolescente à empresária multimilionária.Aos 32 anos, Selena Gomez tem um percurso, no mínimo, curioso. Começando como rosto do Disney Channel, que se destacou na sitcom Os Feiticeiros de Waverly Place (2007-2012) – um sucesso entre os pré-adolescentes, onde também dava voz ao tema principal –, foi pelo registo televisivo familiar que construiu uma imagem para os jovens fãs, sempre alicerçada na faceta de cantora. Um molde, de certa maneira, desfeito com Spring Breakers: Viagem de Finalistas (2012), o filme de Harmony Korine em que a fórmula selvagem do crime, droga e biquínis funcionou como uma passagem perversa à idade adulta... E apesar do “choque”, não se pode dizer que tenha sido um título com imediato efeito revolucionário. Ainda assim, terá sido pela memória dele que Jacques Audiard pensou em Selena para o seu Emilia Pérez. Lá está, a face noturna de Selena. .Em 2019, deu um ar da sua graça na comédia de zombies Os Mortos Não Morrem, de Jim Jarmusch, mas foi, no mesmo ano, em Um Dia de Chuva em Nova Iorque, de Woody Allen, que a vimos florescer um pouco mais enquanto atriz dotada de nuances românticas maduras (na autobiografia A Propósito de Nada, é o próprio Allen quem a elogia pela prestação nesse filme: “Ela é simplesmente um talento natural”). Quem sabe se a sua transição para o modelo essencialmente nova-iorquino de Homicídios ao Domicílio não partiu desta experiência única com o cineasta da cidade... De resto, Steve Martin, cocriador da série, escreveu o perfil de Mabel claramente em função do traço natural de tristeza e sarcasmo de Selena, o arranjo perfeito para uma personagem que é suposto durar várias temporadas – e acreditamos que assim será. .Entre a popularidade da série, o burburinho dos Óscares à volta de Emilia Pérez (que venceu o Prémio do Júri e Melhor Ensemble no Festival de Cannes) e mais de 400 milhões de seguidores no Instagram, Selena Gomez tornou-se nos últimos meses uma das mulheres mais jovens a integrar a lista da Bloomberg, que é como quem diz, o clube dos multimilionários, ao lado da amiga Taylor Swift. A sua fortuna, que ultrapassa os 1,3 mil milhões de dólares (1,18 mil milhões de euros), deve-se essencialmente a uma marca de cosmética fundada em 2020, Rare Beauty, e corresponde à faceta da empresária que sabe comunicar com as novas gerações através de uma nova atitude em relação ao corpo, a chamada “positividade corporal”. .Ora, é isso que se vê também no ecrã: entre a luz do dia em Nova Iorque e a sensualidade da noite mexicana, Selena é um corpo que se libertou das medidas ideais numa distinta atitude de aceitação.