"Se os ricos do mundo descobrirem o paraíso, os Açores podem tornar-se inabitáveis para os açorianos"

Depois de vários anos como jornalista em Lisboa, onde também começou a publicar ficção, o terceirense Joel Neto regressou há nove anos ao arquipélago. No jardim da sua casa, em Terra Chã, fala de si, das ilhas e do livro sobre a Base das Lajes.
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Uma história de amor é o seu último livro, comprei-o aqui numa livraria em Angra do Heroísmo. Foi escrito neste tempo de pandemia?
Sim, foi escrito, editado e publicado em pandemia. Nós, nos Açores, não tivemos confinamentos tão longos como noutras zonas do país. Tivemos um período de confinamento bastante significativo na primavera de 2020, mas depois temos feito uma vida mais ou menos normal, nomeadamente aqui na Terceira. E, portanto, eu trabalhei neste livro ao longo, grosso modo, de um ano, nos primeiros três ou quatro meses sem pandemia e os restantes nove meses em pandemia. Isso condicionou um bocadinho o resultado final.

Deixe-me só esclarecer quem nos lê que é uma história de amor, mas não é um romance. É um livro testemunho sobre as Lajes e a relação entre os portugueses e os americanos.
Que é uma história de amor. Sobretudo do ponto de vista do povo. É evidente que para quem pensa a situação geoestratégica dos Açores, para quem pensa a geopolítica portuguesa no âmbito das relações bilaterais com os Estados Unidos, há preocupações que transcendem as relações do povo da Terceira com o contingente norte-americano e com os Estados Unidos em geral, mas no âmbito destas relações é uma história de amor que se encaminhou várias vezes para um final abrupto, sendo que, felizmente, esse final até hoje não aconteceu.

Quando diz que é uma história de amor, é uma história de amor que é partilhada por uma maioria dos terceirenses. É difícil não ter na família alguém que tenha trabalhado na base?
Sim, mas a influência da presença americana na Terceira é muito mais ampla do que no domínio laboral. Nos anos 50, 60 e 70 do século XX, havia lá trabalhadores de toda a ilha, e esse contingente depois foi sendo progressivamente afunilado no sentido das freguesias circundantes da Base das Lajes e da freguesia das Lajes. Mas efetivamente nos anos 60, 70, em particular nessas duas décadas, havia muitos trabalhadores também desta zona, de Terra Chã, de São Mateus, e existiam camionetas que percorriam a ilha toda recolhendo os trabalhadores e depois devolvendo-os a casa. Mas a influência sempre foi muito mais ampla do ponto de vista do conteúdo. Do conteúdo porque a presença americana envolvia, por exemplo, uma televisão, uma estação de rádio e, embora a televisão e a estação de rádio não tenham, por exemplo, na minha geração, chegado a este lado da ilha, o facto é que havia da parte das pessoas daqui um olhar aspiracional em direção ao outro lado da ilha, que tinha esse toque de urbanidade, de cosmopolitismo, de mundividência, que nós não tínhamos. Depois havia toda a influência dessa presença na cultura popular, na música, no cinema, na própria relação que nós temos com a língua estrangeira. A maior parte dos terceirenses sempre falou inglês, porque ou os seus pais falavam inglês com os americanos na Base das Lajes ou, por osmose, nós também queríamos falar inglês, porque era alguma coisa de diferenciador em relação aos restantes açorianos e aos restantes portugueses. Nós, deste lado, também queríamos o cinema e a música, também queríamos o chocolate e as calças de ganga e os sapatos de ténis da Base das Lajes.

Não era só imitar o modelo americano? Havia também contacto com os americanos?
Havia algum contacto com americanos. Primeiro da parte dos americanos, ou seja, houve vários programas de intercâmbio ao longo dessas primeiras três, quatro décadas da presença americana. Programas de ação social, programas de intercâmbio entre escolas. Depois esses programas foram desaparecendo um pouco, mas continuava, por exemplo, o dia da entrada geral na base, em que todos os terceirenses eram convidados até a ir visitar os aviões. Nós tínhamos esse dia mágico.

Havia uma política de portas abertas num dia especial?
Num dia em especial. Era difícil entrar na Base das Lajes normalmente. Apenas os funcionários e algumas pessoas com cartões de autorização podiam fazê-lo. Mas, ao mesmo tempo, essas pessoas eram imbuídas de um certo espírito de representação de toda a gente. Ou seja, se alguém ia fazer compras à base, avisava as pessoas à volta porque naquele dia podiam encomendar uma série de coisas. Essas coisas, nos últimos 20 anos, praticamente que se extinguiram, até porque a maior parte dos supermercados e dos bares e restaurantes que existiram no interior da base foram fechados em resultado das reduções do contingente. Mas ainda assim continua a haver uma relação de amor entre as pessoas de toda a ilha e a Base das Lajes, não apenas por gratidão, mas também porque é uma presença íntima. Foi sempre uma presença bastante íntima. Note que a própria influência daquele espaço na economia da Terceira é colossal. Mesmo hoje, em que o contingente é pequeno, ainda existem uma série de indústrias-satélites. As freguesias em volta da Base das Lajes são mais ricas do que as outras freguesias rurais da Terceira.

Nota-se que são mais ricas como? Nas casas?
Sobretudo nas festas populares. Porque os funcionários da Base das Lajes sempre contribuíram para as festas populares. Estas festas, daquele lado, sempre foram mais pesadas, como se diz aqui, sempre tiveram mais recursos do que as festas populares deste lado da ilha. Porque havia também esse sentido de dever da parte daqueles que trabalhavam na Base das Lajes de distribuir um pouco desse pecúlio que garantiam naqueles empregos. De maneira que ainda que hoje muitas dessas indústrias sejam mais subterrâneas, a memória histórica daquele espaço, a ética calvinista e a ética de trabalho que a ética calvinista tem, mais o contacto com a cultura pop norte-americana, tudo isso deixa ainda marcas indeléveis na personalidade da Terceira.

Como era a Terceira antes da Base das Lajes e de finais da Segunda Guerra Mundial? Sempre esteve no meio das rotas oceânicas, sempre foi central nos Açores, mas também um sítio de passagem de gentes?
Sempre não. Foi durante séculos, mas em particular nos séculos XIX e primeira metade do século XX perdeu uma grande centralidade, porque as rotas da expansão europeia se transformaram noutra coisa, não é? Transformaram-se numa colonização, digamos que a projeção de força da Europa mudou de perfil. E os próprios navios ganharam autonomia, deixou de ser preciso fazer escala na Terceira. E, ao mesmo tempo, verificou-se um desenvolvimento significativo do ponto de vista industrial da ilha de São Miguel, que de algum modo transferiu para lá essa centralidade nos Açores.

E em tempos mais remotos? As caravelas que vinham das Índias passavam por aqui. E as das Américas também...
Sim, passavam aqui muitos navios, caravelas, naus, galeões, ou seja, navios ao serviço da coroa portuguesa, mas também navios ao serviço da coroa espanhola, navios holandeses, ingleses, etc. Na baía de Angra do Heroísmo há registo de mais de 900 naufrágios ao longo da história. Naufrágios a maior parte deles provocados pelo vento sul e dos quais 200 com valor patrimonial significativo. Pusemos-lhe uma marina em cima e, portanto, esse património não é visitável, não está devidamente preservado, não está devidamente inventariado, foi muito saqueado ao longo do século XX durante a tradição da caça ao tesouro, mas ainda há registos de valor incalculável do ponto de vista historiográfico, ainda que não do ponto de vista monetário, digamos assim. Esses navios naufragavam muitas vezes em resultado dos ventos sul e sudeste, que são ventos que podem ser bastante agressivos e que ganharam o nome de "vento carpinteiro". Porquê? Porque faziam chegar à costa pedaços de madeira dos navios que iam naufragando. Esses pedaços de madeira e outros artefactos eram depois muitas vezes incrustados nas construções de Angra, por exemplo, e ainda hoje se podem encontrar pedacinhos de navios nalguns edifícios de Angra, em metal, e, historicamente, também pedaços em madeira, inclusive no exterior dos edifícios.

Disseram-me que aqui não se usam ervas aromáticas, mas sim especiarias, porque as especiarias vinham cá parar com frequência pela passagem dos barcos. Há essa herança de peculiaridades?
Sim, por exemplo, o nosso prato mais emblemático é a alcatra. A alcatra leva cravinho-da-Índia, leva pimenta-da-Jamaica, leva ingredientes das sete partes do mundo. O nosso doce mais emblemático é a queijada Dona Amélia, que é um doce conventual que foi criado para oferecer à rainha Dona Amélia por ocasião da monarquia aberta, aquando da visita do rei Dom Carlos à Terceira, e a receita compreende mel de cana do Brasil e canela, mais uma vez da Índia. Portanto, esse registo está na nossa gastronomia e está também na nossa flora. Eu tento neste meu pequeno jardim ter também essa diversidade, e se forem ao jardim de Angra vai ser ainda mais evidente, pois as plantas estão catalogadas e encontra-se flora de todos os recantos do universo. A flora botânica foi a primeira coisa a mundializar. E a Terceira, como ponto de escala, em particular, das caravelas e depois das naus, foi ficando sempre com muitos exemplares dessa flora toda e espalhando-a pelo arquipélago.

É caso para dizer que a flora da Terceira é mais diversa do que a do resto das ilhas?
É mais diversa do que a do resto das ilhas e é mais diversa do que a do continente. É uma flora profundamente rica. É evidente que depois houve outros esforços de trocas de botânica ao longo dos séculos seguintes. E, portanto, se nós formos ao Buçaco, há todas aquelas florestas à volta e nós encontramos espécies do mundo inteiro também. Mas temos aqui, desde sempre, essa flora. Ou outra flora. Esta araucária que aqui está é da Nova Zelândia, aquela criptoméria que está ali é da península coreana. Portanto, esta flora toda vem de sítios absolutamente distintos, e hoje em dia até, em alguns casos, confundimo-la com os Açores, porque ela começa a existir aqui mais do que em qualquer outro sítio.

Para quem está a ler a entrevista, para perceber porque é que diz esses nomes todos com esta convicção, vir para a Terceira foi um regresso aos Açores, há nove anos, pois nasceu aqui...
Eu nasci aqui, vivi os primeiros seis anos entre os Açores e o continente - o meu pai é do continente, é de Fátima - e vivi entre a Terceira, o Estoril, Alcântara, Torres Novas, portanto vivemos em deambulação permanente, pois o meu pai era polícia.

A sua mãe é que é açoriana?
​​​​​​​A minha mãe é açoriana, conheceram-se por fotografia, porque são protestantes, e o meu pai conheceu a família da minha mãe em França - devo ser o único açoriano que não tem parentes nos Estados Unidos e no Canadá e, paradoxalmente, tem família em França. O meu pai conheceu a família da minha mãe lá, viu uma fotografia dela e escreveu-lhe e casaram-se, e ainda hoje estão casados. É uma história deliciosa.

A sua infância foi aqui?
Nasci cá. E depois de seis anos em deambulação, vivi cá entre os seis e os 18. Não vivi o sismo de 1980 porque não estava cá. Mas vivi o rescaldo - vim em março, depois os meus pais vieram em junho e fiquei até ir para a faculdade, em 1992 e depois fiquei 20 anos exatos em Lisboa, até 2012. E entretanto, quando voltei, era suposto ficar apenas quatro ou cinco anos - vinha só para escrever um livro, que era O arquipélago, que foi publicado em 2015 e, na verdade, que permanece até hoje o meu principal sucesso comercial, mas, entretanto, não quis voltar e não me vou embora.

E este conhecimento de botânica, de jardinagem, começa nesta fase recente dos últimos nove anos?
​​​​​​​Desde que fui para Lisboa, sentia o chamamento da terra. Mas eu nunca quis voltar sem ter adquirido alguma evidência e algumas ferramentas, até profissionalmente, e depois já achava que o regresso nunca iria acontecer. Mas entretanto os meus avós morreram, a minha família quis vender a casa dos meus avós e eu pensei que isso era intolerável, por isso comprei eu a casa, depois comecei a vir aqui cada vez com mais frequência, até que aconteceu o advento da crise de 2011, e achei que, como jornalista freelancer, como escritor de poucos leitores, tinha de ter uma vida mais barata, mais protegida e, se calhar, devia dar uma oportunidade a mim mesmo de escrever o épico que queria escrever sobre os Açores. De maneira que juntei o desejo àquilo que não era uma necessidade, mas podia vir a ser. Porque podia vir a ter um grave corte de rendimentos. Os rendimentos, na verdade, não sofreram graves cortes no momento, mas foram sofrendo ao longo dos anos.

Mas conseguiu que os Açores se tornassem uma vantagem...
Claramente, em todos os sentidos. Primeiro, no que diz respeito à minha presença em Lisboa, os meus livros cresceram exponencialmente e o interesse em torno do meu trabalho e até da minha pessoa também aumentou. Creio que ganhei romantismo, talvez também tenha trabalhado um bocadinho nessa personagem, não posso dizer que não, mas cresceu um certo romantismo à volta de mim que foi muito benéfico para o meu trabalho e, concomitantemente, para a minha subsistência.

Existe um certo fascínio pela açorianidade e de repente encarnou isso?
​​​​​​​Bom, não quero dizer que encarnei isso, mas, realmente, os Açores despertam grande afeto nos portugueses. São tidos como o último paraíso do país, e eu, ao fim de nove anos, até diria que são o último paraíso, um dos últimos países do planeta. São realmente um paraíso para quem, como nós, pertence à classe média, porque ser pobre nos Açores é algo muito difícil.

É uma terra em que há poucas oportunidades...
​​​​​​​Há poucas oportunidades, tem um índice de desenvolvimento humano muito baixo, tem muito analfabetismo, muito insucesso escolar, muito abandono escolar, muito abuso sexual, muita violência doméstica.

Consegue ter uma explicação para tudo isso?
Sempre foi uma terra pobre, e depois transformou-se numa terra demasiado subsídio dependente e nunca fez um esforço de investimento em infraestruturas multiplicadoras. E os dois ciclos de governação que tivemos até hoje - vamos agora no início do terceiro - foram demasiado longos. O primeiro preocupou-se em fundar e consolidar a autonomia - criar nove portos, nove aeroportos, nove de tudo. Nós precisamos nove de tudo. Mas depois cristalizou. O segundo preocupou-se em abrir os Açores ao mundo, em modernizar, mas depois também cristalizou. O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.

Há pouco falou da família ser protestante. Aqui na ilha estamos a falar de quantas pessoas?
​​​​​​​Protestantes em geral não sei bem, mas da igreja batista dos meus pais eram, grosso modo, 50 pessoas aqui na ilha. Portanto, um para mil.

Se me tivesse dito batista antes de falar de tudo o resto eu diria que era influência da base, mas não é...
​​​​​​​Não é. O meu pai converteu-se em Moçambique, quando era combatente. E a minha mãe já nasceu na Igreja dos Irmãos por influência de um cônsul americano na ilha de São Jorge, que era também pastor da Igreja dos Irmãos e que fundou uma missão na ilha. O meu avô era de São Jorge, e quando ele se mudou para a Terceira foi quem fundou a missão da Igreja dos Irmãos aqui na ilha e foi diácono dessa igreja durante muitos anos. Depois a igreja foi extinta e os meus pais transitaram para a igreja batista, que tinha uma doutrina bastante semelhante, e o meu pai é diácono até hoje.

Portanto, está a falar de um grupo ultraminoritário aqui. Como foi ser criança um pouco diferente?
​​​​​​​Sim. A comunidade cresceu, diminuiu, mas andou sempre à volta das 50 pessoas. Mas hoje está muito mais integrada socialmente. Eu vejo as crianças da geração a seguir à minha, ou seja, os filhos dos meus amigos da igreja, de quando eu era miúdo, e são crianças com uma modernidade que nós não tínhamos. Nós restringíamos a fazer tudo. No Carnaval fazíamos retiros para não nos imiscuirmos na festa da carne. Não participávamos das festas populares, dos Santos Populares, nem santos cristãos em geral. E hoje em dia não é nada disso. As crianças gozam a vida como eu gostaria que nós tivéssemos podido gozar. Mas isso também nos formou, porque nós, de algum modo, fomos formados na adversidade, a adversidade dos ilhéus, a adversidade de ser protestantes. E suplantámos todos uma série de obstáculos que não teríamos suplantados se não tivéssemos sido formados na adversidade.

Falou também da tolerância, que, apesar de tudo, estas ilhas foram mantendo, nomeadamente a Terceira. 2019 estava a ser um pico do turismo nos Açores. A pandemia afetou isso, mas, ao mesmo tempo, no continente, percebe-se que há muita gente que quer agora descobrir os Açores porque tem medo de ir para longe. Acha que o turismo vai ser o futuro da Terceira?
O turismo estava a crescer. Neste momento está a crescer outra vez, mas de uma base muito mais pequena. Porque a base se reduziu dramaticamente. E creio que o futuro destas ilhas passará também pelo turismo. Eu próprio tenho um projeto no domínio do turismo, que entretanto parou porque estava a desenvolvê-lo com um sócio e quando a pandemia surgiu nós tivemos de parar de o promover durante um ano ou dois. Um projeto grande, de que não iremos desistir. Eu continuo a acreditar no turismo.

Mas além do turismo é difícil?
Além do turismo, exportar seja o que for é difícil. E, por outro lado, não há mercado interno para suportar a maior parte das indústrias que nós possamos vir a criar. E eu não vejo muitas soluções para estas ilhas a não ser o turismo. Agora, temos outros dilemas, e eu creio que o turismo vai voltar a crescer. Vamos ver como será a retoma nesta área. Vamos ver como é que a aviação, a indústria da aviação em particular, corresponde às necessidades do turismo, em particular nestas ilhas. Como é que o governo regional, o governo da República e a União Europeia conseguem assegurar que ilhas como estas são assistidas pelas companhias aéreas de um modo que lhes permita retomarem o seu desenvolvimento, e também vamos ver se não acontece nestas ilhas, no pós-pandemia, a sua descoberta pelos ricos. Porque se os ricos do Norte da Europa, do Centro da Europa, e mesmo do Sul da Europa, se os ricos da América do Norte, se os ricos da Rússia, se os ricos do Brasil e os ricos de Angola descobrirem os Açores, a paisagem das nossas ilhas, o paraíso que os Açores são a todos os níveis, e começarem a instalar aqui os seus retiros de férias, como já o fizeram em tantos outros paraísos, a inflação que isso vai provocar em muito pouco tempo pode tornar os Açores inabitáveis. Mas inabitáveis para os açorianos.

Os Açores podem ser vítimas do seu charme?
​​​​​​​Vítimas do seu charme e alvo de uma gentrificação e de uma inflação que os torna inabitáveis por parte dos açorianos.

Uma das coisas que aqui, nos Açores, no meio do Atlântico, me surpreende sempre é chegar e perceber que numa gastronomia riquíssima estou no reino da carne. O açoriano come mais carne do que peixe? No seu caso em particular como acontece?
Eu como bastante peixe, mas talvez tenha razão, se calhar como mais carne do que peixe. Isso é muito simples de explicar. O melhor vai para exportação. As pessoas têm acesso a bom peixe se quiserem, mas se as pessoas quiserem mais peixe vamos ter de mudar os fluxos para poder fornecer mais peixe a quem o quiser comprar. Porque neste momento o melhor peixe é para exportação. Quando eu era miúdo, nós comíamos um peixe extraordinário chamado imperador. Era um peixe banalíssimo quando eu era miúdo. O senhor vendedor de São Mateus vinha de triciclo motorizado, trazia a caixa do triciclo cheia de peixe, amanhava o imperador ali mesmo à nossa frente, em cima do seu triciclo, e agora, nos tempos que correm, não existe imperador nem nos melhores restaurantes da Terceira, porque o imperador está na moda e portanto os chefes de Lisboa todos querem este ótimo peixe nos seus restaurantes.

Para terminar, o que é que o escritor Joel Neto anda a ler aqui nos Açores?
​​​​​​​Estou a ler, por exemplo o Hemingway, da primeira fase dele, da fase, digamos, pré-guerra civil de Espanha, que foi a época em que ele consolidou uma espécie de narrador que me interessa, que é um exercício sobre a ideia do centro de consciência que me interessa estudar melhor, que tem a ver com... enfim, é uma noção muito particular no centro.

Mas está a dizer um grande nome da literatura estrangeira. E portugueses? Não lhes dá hipótese?
Dou, claro.

Não estou a falar dos clássicos. Estou a dizer os novos, aqueles que competem consigo.
Eu não compito com ninguém. Na verdade, os nossos livros talvez possam competir por um lugarzinho na prateleira, só isso.

O lugar na prateleira, e sobretudo no escaparate, é muito importante, não é?
É fundamental, claro. Mas eu não sinto que compita com ninguém, até aprendo com eles, com os outros.

Mas há alguém que siga que perceba que está ali um grande valor? Que é alguém que valha a pena ler?
​​​​​​​Muitos. De diferentes âmbitos. O Gonçalo é evidentemente um grande autor, o Valter é um grande autor, o Afonso é um grande autor, o João Tordo também.

São, mais ou menos, da sua geração.
São, mais ou menos, todos da minha idade .O Afonso é mais velho. E o Gonçalo também é ligeiramente mais velho. Talvez o Valter seja um pouco mais velho, não tenho a certeza. Penso que é uma diferença mínima de idade. Mas são todos mais ou menos de meados dos anos 70, da primeira metade dos anos 70.

E o jornalismo? Está um bocadinho desiludido? Não se imagina agora jornalista numa redação?
​​​​​​​Não. Numa redação não me imagino há muito tempo. Já saí em 2015 e saí muito saturado. Eu não sou um grande adepto em termos de conseguir trabalhar em equipa. Sou escritor. Um escritor é um solitário.

Já não lhe seduz aquele ambiente de confusão e de discussão, de dezenas de pessoas a escrever num espaço aberto?
​​​​​​​Não, eu sou do plano, da preparação, da sistematização. Preciso ter tudo muito controlado e preparado para poder libertar a veia criativa no momento da execução. E, portanto, o meu trabalho não é dar respostas, como um jornalista as dá. O jornalista preenche espaços em branco. O trabalho de um escritor é formular espaços em branco.

leonidio.ferreira@dn.pt

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