Escândalos, cinema de elite e um caso português, assim vai a 70.ª edição do Festival de San Sebastián. O certame, que decorre até sábado, amanhã enfrenta a muito aguardada nova ficção de Marco Martins, Great Yarmouth - Provisional Figures, a partir de histórias verdadeiras de emigrantes portugueses num dos locais mais esquecidos e pobres do Reino Unido. Histórias que já deram um espetáculo teatral e que agora são cinema puro, quase no precipício com uma soturnidade tormentosa. Beatriz Batarda, mais do que sublime, é Tânia, portuguesa que ajuda os portugueses a instalarem-se antes de serem escravizados numa fábrica de abate de perus. Pelo meio, ela tenta superar um casamento com um inglês alcoólico e mantém um esquema de desvio de dinheiro para alimentar o sonho de ter o seu próprio hotel. Tudo parece mudar quando sente uma atração por um emigrante acabado de chegar, alguém cuja chegada ao Reino Unido parece trazer um outro motivo para além da necessidade de trabalhar..Escuro e triste como a mais explícita das penumbras, Great Yarmouth - Provisional Figures chafurda na miséria humana e denuncia uma situação de claro abuso dos direitos dos trabalhadores. O que Marco Martins encena naquela fábrica e nas espeluncas onde os portugueses dormem é da ordem do horror humano. É muito para além do "soco no estômago", é antes quase cinema de terror, com decapitação de aves incluída e uma aragem a pobreza raramente vista, mesmo quando às vezes tudo pareça uma espécie de cocktail das sombras de João Canijo e Ken Loach. As soluções da câmara de Marco Martins estão à disposição de uma verdade de uma experiência social marcante. Pode nem tudo resultar, mas é um empreendimento, uma antecâmara dos horrores pré-Brexit de um falhanço da decência humana numa parte de Inglaterra que falhou. E do que não resulta é importante realçar a personagem de Nuno Lopes, homem seco e fechado, alguém que a montagem às tantas se esquece. Também não resultam alguns tours-de-force visuais bem "arranjados", com um certo cuidado de luz austera para dilatar o ambiente de inferno humano - era escusado, parece proeza técnica..Mas o triunfo do filme está no estender da passadeira às possibilidades infinitas de uma personagem, uma mulher frágil com capa de "mãe", de dama de ferro. Essa é a pérola do projeto e é agarrada por uma atriz que desaparece e se transforma nesta Tânia de todas as dores, uma magnífica Beatriz Batarda. Um trabalho de uma potência inimaginável, uma daquelas interpretações aberta à canonização e seguramente perto da Concha de melhor atriz no festival. E os momentos da guinada romântica com Nuno Lopes são de ouro, como se o amor ou a sua mentira pudessem ser a causa da maior dor de todas que encontramos nesse inferno. Isso dói muito e toca ainda mais....Mas neste arranque de San Sebastián toda a controvérsia está em Sparta, de Ulrich Seidl, viagem pela intimidade de um homem a descobrir as suas tendência pedófilas. Um filme que San Sebastián não quis retirar da programação após uma investigação jornalística na Alemanha ter posto em causa a maneira como crianças filmaram cenas semi-nuas com um ator nu num contexto de uma ficção com este tema. Ao que parece, as famílias dos meninos-atores não terão sido informadas sobre o tema da história. O realizador austríaco nega tudo mas já viu o filme ser anulado no TIFF de Toronto e o seu nome está debaixo de fogo, tanto que nem ele quis vir defendê-lo aqui ao festival..Na verdade, no cinema não pode valer tudo: as imagens deste imaginário de pedofilia com crianças a brincar ao lado de Georg Friedrich (ator de filmes como Import Export, também de Seidl) atiçam o nojo. Se no cinema deste autor o nível gráfico faz parte do pressuposto, este tema pedia uma outra abordagem. O que a personagem vê e sente era escusado ser mostrado com a clareza que a câmara mostra. Além do mais, é um filme que repete esquemas e pequenas técnicas do cineasta. Ulrich Seidl parece não encontrar aquela secura original que era tão só dele. Aqui, o mergulho na infância não é o espelho da perdição humana de uma sociedade, é só rotina. Claro que para o festival uma polémica destas vem a calhar para o mediatismo....Fora das controvérsias (ou não), corações ao alto com Le Lycéen, de Christophe Honoré, que filma sem puritanismos um adolescente a 17 anos a ter sexo gay com jovens e um adulto num conto sobre o luto. Honoré a encantar numa obra tão confessional como poética. Uma ode aos corpos livres e ao fascínio de Paris como cidade de todas as tentações. Um cineasta a filmar com um prazer sensual e a arriscar numa premissa na qual o importante é acreditar no incrível dom da pujança da juventude. E tudo pode estar num grande plano da sorriso de Paul Kircher (ator revelação que enche o ecrã) abraçado a Juliette Binoche, a mãe de todo o amor incondicional. Comovente..dnot@dn.pt