Salman Rushdie: o escritor em estado de choque
O mais recente livro de Salman Rushdie não é um romance. E não o é porque, como informa o leitor logo ao início, enquanto não desabafasse por escrito o que lhe acontecera a realidade não lhe permitia regressar à ficção. Então, surge, poucos meses após o lançamento do livro que acabara de terminar, Cidade da Vitória, um registo do acontecimento que quase acabou com a sua vida. Deu-lhe por título apenas uma palavra, a suficiente para muitos dos seus leitores habituais, além de todos os que souberam o que se passou no dia 12 de agosto de 2022 no anfiteatro de Chautauqua, entenderem que estão perante um relato verídico. Chamou-lhe Faca.
A arma que aquele homem que o escritor não refere o nome verdadeiro na narrativa usou para o apunhalar mais de uma dezena de vezes em pleno palco, preferindo dar-lhe o epíteto de “assaltante” ou de “A” no capítulo que titulou “O Anjo da Morte”. Faca começa por contextualizar esse momento: “Às onze menos um quarto fui atacado e quase morto por um jovem mal subi ao palco para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo. Estava com Henry Reese, mas não chegaríamos a ter essa conversa. Vejo ainda o momento em câmara lenta. Os meus olhos seguem o homem que corre para se aproximar de mim. Levanto a mão esquerda, num movimento de autodefesa. Ele crava a faca. A seguir há muitos golpes, no pescoço, no peito, no olho, em toda a pare. Sinto as pernas fraquejarem e caio.”
Este início já é conhecido de tão contado nas notícias publicadas naquele dia e nos seguintes. Mas não pode deixar de ser lembrado, afinal, como diz em seguida, essa fora a sua “última noite inocente”. Rushdie faz questão de pouco depois evitar que a sua prosa memorialista encaminhe o leitor para uma provável causa, o seu polémico romance que teve direito a uma fatwa, como todos pensaram mal se soube do drama. Nega esse motivo: “‘A’ não cuidou de se informar sobre o homem que decidira matar. Reconheceu que leu escassamente duas páginas do que escrevi e viu um par de vídeos no YouTube, e não precisou de mais.” Rushdie conclui: “Daqui podemos desdizer que, fosse o ataque pelo que fosse, não foi por causa d’Os Versículos Satânicos.”
Como num romance, o testemunho do escritor ganha fôlego de investigação em apenas três páginas, como se se tratasse de uma espécie de policial, situação que a capa com uma faca em grande destaque até poderia induzir o leitor para um outro registo que não o verdadeiro. “Vou tentar neste livro compreender por que razão foi”, avisa antes de provocar confusão. O que faz nas 250 páginas que se sucedem.
A dimensão deste livro é em muito inferior à de Joseph Anton, que precisou de 736 páginas para confessar o que se passara há 33 anos, quando, a 14 de fevereiro de 1989, soube que fora “condenado à morte” pelo aiatola Khomeini pelo que escrevera em Versículos “contra o islão, o Profeta e o Corão”. Desse dia em diante viveu na clandestinidade, protegido por uma equipa de seguranças noite e dia por um período de quase uma década. Joseph Anton termina quando recupera uma semiliberdade e tenta voltar à normalidade da vida de um escritor.
O relato desse livro é mais espesso que o de Faca, até porque a digestão de tão grande temporada privado de direitos assim o exigia. Nada que diminua o valor da mais breve dimensão de Faca, apesar de nesta segunda profanação da sua vida o perigo ter sido instantâneo e quase fatal. Rushie começa por elaborar sobre pesadelos e presságios, como os que teve nas noites anteriores à tentativa de assassínio: um gladiador romano que o atacava e o público que exigia sangue, o princípio do romance Cem Anos de Solidão, em que o leitor é avisado do que de terrível irá acontecer sem o protagonista nada poder fazer para o evitar, o filme de Meliès que descreve a chegada à Lua dos primeiros homens e que, tal como lhe irá acontecer com uma das facadas, o foguetão aterra dentro do olho do satélite, ferindo-o.
Rushdie mantém a adrenalina da narrativa fazendo as perguntas que todos depois fizeram: “Porque não lutei? Porque não fugi? Fiquei ali especado como um saco de pancada e deixei-o estraçalhar-me. Seria tão fatalista que estava simplesmente preparado para me render ao meu assassino?” É a estas perguntas que Faca irá responder, com a ajuda de um intrincado mecanismo interrogatório que o escritor traz para um livro que, confessa, “era um que eu preferia não ter precisado de escrever”. Justifica-o que com a sua publicação assume “a propriedade do que aconteceu”. Os leitores agradecem, ainda estupefactos com a lembrança daquela entrada no palco de um ator a quem não tinha sido entregue nenhum papel e que deixou o escritor em estado de choque.
Faca
Salman Rushdie
D.Quixote
269 páginas
Mais novidades literárias
Revisitar Montalbán & Pepe
A trama deste policial não foge ao esquema que os leitores tanto apreciavam em Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), quando o detetive Pepe Carvalho mergulhava na sua investigação para esclarecer os crimes de que era encarregado. A história percorre o ano em que se pensava que um empresário da construção civil estava ausente no estrangeiro, mas, afinal, permanecera em Barcelona e aparece morto. Apesar de o tempo da ação ser o do ano de 1979, os apartes trazem-nos até ao presente, como é o caso de referências aos anseios políticos que abalam a Catalunha, como aos da “corja de especuladores imobiliários” a que pertence o morto, sem esquecer a abundante gastronomia, repleta de degustações e de experiências como o da bondade do emparelhamento do salpicão de javali com o vinho tinto de Peñafiel, sem ignorar um piscar erótico sempre presente.
Os Mares do Sul
Manuel Vázquez Montalbán
Quetzal
320 páginas
Revisitar Kafka
Só o facto de a letra K chegar para ser título de um livro e de este símbolo da linguagem levar o leitor a fazer a relação entre a inicial e o nome do escritor que dá origem a este trabalho de investigação, de uma enorme revisitação aos seus livros e de uma extrapolação dos labirintos que servem de cenário à elaboração das narrativas que estão infiltradas em dois dos romances que continuam a ser lidos e debatidos quanto aos seus significados ao fim de décadas. Os dois livros que ocupam principalmente este estudo do autor Roberto Calasso são O Castelo e O Processo. O escritor é, como já se adivinhou, Kafka. O autor percorre em K. todos os caminhos possíveis para destrinçar o escritor dos mitos, destacando a “intraduzibilidade” da experiência psíquica em Kafka e de como fruto da sua personalidade se torna singular, tal como os dois “estrangeiros” que protagonizam os romances em causa nesta busca por sentidos nas duas obras.
K.
Roberto Calasso
Edições 70
300 páginas