"É o órgão de Lisboa mais visitado”, explica ao DN João Vaz, professor na Escola Superior de Música e organista em São Vicente de Fora, referindo-se ao instrumento do qual é titular desde 1997 e que mantém o “ciclo de concertos regulares mais extenso. E é também uma igreja onde o órgão histórico participa sempre em todas as cerimónias de liturgia que há”, que é algo que não acontece noutros locais de culto e que nem sempre aconteceu neste.Acima de tudo, é um instrumento histórico construído em 1765, composto por mais de três mil tubos de bisel e de palhetas (lâminas que vibram com a passagem de ar e que produzem som, à semelhança do que acontece, por exemplo, com os bucais dos saxofones).“Este instrumento é muito importante, não só porque é um dos maiores órgãos históricos de Portugal e talvez o maior em termos de tubos originais, é também um dos mais importantes órgãos históricos da Europa, não só pela qualidade da construção e da dimensão, mas porque foi muito bem restaurado, em 1994, pelos organeiros (construtores e especialistas em órgãos) Christine Vetter e Claudio Rainolter”, revela João Vaz, com emoção, como se estivesse a falar de uma pessoa que nasceu e mora em Lisboa.O instrumento, de acordo com o professor, “mantém toda a tubaria original, os mesmos materiais. 98% dos tubos - e são mais de três mil - são os originais.”.Da construção sabe-se muito pouco. “Foi construído por João Fontanes de Maqueira, um organeiro de origem galega, nascido em Pontevedra, que desenvolveu grande parte da sua atividade em Portugal. Esta é a sua maior obra”, diz o organista sobre um instrumento que vai ganhando personalidade à medida que se conhece a sua história.Afinação e temperamentoAté 1834 - quando um decreto assinado por D. Pedro IV, integrado numa reforma liberal, determinou o fim de conventos, mosteiros e colégios de ordens regulares - “o órgão foi mantido muito bem”, relata João Vaz, acrescentando que o instrumento, com a conversão de São Vicente de Fora numa igreja paroquial, “continuou a tocar regularmente até ao final do século XIX”, quando surge “uma última referência à intervenção do órgão na liturgia”.“Depois esteve parado durante meio século, e depois foi posto a tocar, ou sofreu uma intervenção, por um organeiro português da época - João Sampaio - que tornou este instrumento tocável. Nessa altura, ou antes disso, o órgão foi colocado num temperamento igual e com o diapasão a 440”, desvela João Vaz, referindo-se à afinação do instrumento que, neste caso, tendo em conta a convenção atual, tem o Lá da terceira oitava (intervalo de oito notas musicais, como acontece em Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si e Dó) afinado a 440 Hertz (Hz) - unidade de frequência.Em relação ao sistema que determina o espaço entre as notas musicais e que acaba por influenciar a forma como um instrumento em determinadas tonalidades se comporta, este órgão tem um temperamento desigual, quando a maioria dos instrumentos atuais tem um temperamento igual..O temperamento desigual - e há muitos temperamentos desiguais diferentes, como os que foram criados pelo compositor alemão Johann Sebastian Bach - no órgão de São Vicente de Fora mantém-se desde 1994, quando “foi restaurado profundamente” e “todo desmontado”, conta o professor, por Christine Vetter e Claudio Rainolter. Nessa altura, “foi impossível repor o diapasão original, porque isso implicaria acrescentar os tubos todos, que teria sido uma intervenção demasiado violenta para o material existente. Mas o temperamento foi alterado, passou a ser desigual, baseado naquilo que os tratados portugueses da época referem, que normalmente são um pouco arcaizantes, e, por outro lado, com o estudo do repertório escrito em Portugal nesta altura, que já era bastante avançado do ponto de vista de variedade de tonalidades. Portanto, é um temperamento desigual, que, apesar de tudo, é bastante doce, permitindo tocar música de muitas épocas diferentes”, sublinha João Vaz..Perante todas as características, incluindo afinação e temperamento historicamente informados, este órgão lisboeta ficou “muito famoso”, continua João Vaz, destacando que é “muito conhecido mesmo fora de Portugal, sobretudo em França. É curioso ver que as primeiras gravações [antes do restauro de 1994] que houve neste órgão foram feitas por organistas estrangeiros”, incluindo o organista titular da Catedral de Notre-Dame, em Paris, entre 1955 e 1984, Pierre Cocherau.O público permanece João Vaz é responsável pelos vários ciclos de concertos que decorrem, entre abril a dezembro, todos os segundos sábados de cada mês, em São Vicente de Fora, que, agora, são uma “coisa mais ou menos cristalizada”, afirma. Questionado sobre a reação do público, o organista fala numa resposta física das pessoas que passa por ficarem nos concertos em vez de escolherem sair.“O problema dos concertos de entrada livre é que também têm saída livre. Quando a gente vê que umas pessoas vêm, mas ficam, isso realmente surpreende-me, porque este órgão, apesar de ser grande, é pequeno para a igreja e fica longe do público.” Esta distância física, que é relativizada pelo facto de a igreja fazer parte do próprio instrumento, não adultera a qualidade do som, que “é tão grande que realmente agarra o público, independentemente da música que é tocada. E isto, de certa maneira, não só é afirmado pelo público, de forma um pouco não verbal, mas também por todos os organistas que aqui têm tocado”, completa o professor.Entre as pessoas que visitam aquela igreja, analisa João Vaz, há quem demonstre “vontade de conhecer este instrumento, porque tem algo mais do que um conjunto de tubos e teclas, que materialmente constitui um órgão”..João Vaz assume que “há algo quase mágico neste instrumento, que tem atingido muitas gerações de organistas desde que ele soa modernamente”.Para além disto, “quando um órgão é restaurado, parte da sua vida posterior vem da utilização. Em Portugal não faltam exemplos de órgãos que foram restaurados, nos quais se investiu uma quantidade enorme de dinheiro, e que depois ficaram votados ao abandono”, critica o professor, argumentando que a única garantia para a sobrevivência de um órgão numa igreja “é o uso dele na liturgia”, que em muitos sítios não acontece. “Nós encontramos dezenas de igrejas pelo país fora com órgãos históricos restaurados que não são usados. Nunca foi o caso aqui. Este órgão, desde que foi restaurado, foi usado sempre”, explica.A não utilização destes instrumentos acontece porque “havia uma ideia de que o órgão histórico português não é um instrumento adequado à liturgia dos dias de hoje”. Para além disto, “é difícil de tocar, e um organista com menos preparação não consegue. Outras vezes, o temperamento desigual não permite determinadas tonalidades”, conclui o professor, acrescentando que estas justificações “são dificilmente consideradas incontestáveis”, até porque, só em Lisboa, há “várias igrejas que têm órgãos históricos e que funcionam regularmente na liturgia”, como “a Basílica da Estrela.Em relação a São Vicente, revela João Vaz, há pessoas que visitam a igreja só pelo órgão. “Para elas já seria um bocado anormal se o órgão já deixasse de ser usado”, conclui..Torres Vedras lança Festival de Música Antiga para dinamizar espaços históricos.Tigran Hamasyan: “A música tradicional, em si, não precisa de mais nada. Tudo acaba por vir das raízes”